quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

“Assassinato no Expresso do Oriente” (2017)

Uma versão cinematográfica notável do thriller romanesco de Agatha Christie Assassinato no Expresso do Oriente (Murder on the Orient Express, 1934) chegou há pouco às telas. Dirigida por Keneth Branagh, a obra consegue num só tempo construir sequências visuais eletrizantes, no melhor estilo dos blockbusters rodados nos últimos anos, e efetuar um mergulho de fôlego no interior das personagens criadas pela gênia inglesa. 
Malgrado a quantidade considerável de suspense e ação que o filme abarca, há nele um potente e inesperado exercício teatral – que engole suas características eminentemente cinematográficas, regurgitando-as diante de um palco ilusório, com alta dose de ironia. 
Keneth Branagh é ator de sólida formação teatral. Construiu-se entre a tradicional “Royal Shakespeare Company” e a “Renaissance Theatre Company”, companhia fundada por ele. Sua aproximação do cinema deu-se a princípio na relação que a arte poderia estabelecer com o teatro: daí as versões cinematográficas das peças de Shakespeare “Henrique V” (1989), “Muito barulho por Nada” (1993) e “Hamlet” (1996), as quais ele além de dirigir, adaptou (tendo igualmente atuado nas duas tragédias). 
Branagh deixa o roteiro deste “Assassinato no Expresso do Oriente” nas mãos de Michael Green, desempenhando, além da direção, o papel de Hercules Poirot. Mesmo os leitores mais esporádicos de Agatha Christie certamente se lembrarão deste seu mais notório detetive, homenzinho esquemático e genial (hoje em dia, a literatura médica lhe diagnosticaria com um severo TOC...), cópia mal-disfarçada de Sherlock Holmes, a trocar o abuso das substâncias alucinógenas pelas iguarias culinárias. 
Qualquer intenção de retomada deste romance de Christie causa de saída ceticismo, depois de sua versão irrepreensível rodada sob a batuta de Sidney Lumet em 1974, com um elenco estelar do qual faziam parte, entre outros, Ingrid Bergman (que ganharia o Oscar de atriz coadjuvante pelo desempenho), Lauren Bacall, Jacqueline Bisset, Vanessa Redgrave, Sean Connery e Anthony Perkins, elenco chefiado por Albert Finney no papel de Hercule Poirot. 
Branagh surpreendentemente não busca o confronto. Orquestrador do conjunto, além de protagonista, o ator/diretor utiliza sua expertise na adaptação às telas de clássicos teatrais e romanescos, apropriando-se com distanciamento crítico da obra de Christie. 
O contorno irônico que ele imprime à sua personagem estende-se como nota dominante para o restante da obra. Daí às concessões que ele faz à estética do blockbuster – por exemplo, a perseguição de Poirot ao secretário do homem assassinado, sob as estruturas da ponte que sustenta o trem emperrado; ou o ultra-realismo com que pinta a avalanche que impede o desenrolar da viagem – se seguirem, ato-contínuo, às tomadas estáticas dos diálogos entre o detetive e os suspeitos, diante de cenários que aludem ao tableau teatral e ao trompe d’oeil, artifícios utilizados no tempo em que Agatha Christie era menina. 
O espaço da acariação remete à Mesa de Leitura, momento
fundamental das montagens teatrais
Se o all star cast é também característico desta versão de “Assassinato no Expresso do Oriente” – entre outros, Judi Dench, Michelle Pfeiffer, Penélope Cruz, Willem Dafoe e Johnny Depp –, o filme consegue, como na versão de 1974, construir as personagens a contrapelo dos rótulos que o star system lhes impôs. A partir de agora a análise se obrigará aos spoilers. Os pontos altos são Cruz, no papel da babá da menina sequestrada e morta (mesmo papel que deu à estatueta a Bergman), mas especialmente Pfeiffer, como a atriz afamada que perdera a filha e a neta, a grande engendradora do assassinato coletivo de Edward Ratchett - na atuação-dentro-da-atuação, Pfeiffer é uma variante das femme fatales que desempenhou durante a sua carreira, contraparte da mulher torturada que, ao cair do pano, ela se revelará. 
Qualquer adaptação diz mais sobre o momento histórico no qual ela foi criada do que sobre a obra da qual ela se originou. Este “Assassinato no Expresso do Oriente” traz como saldo uma dose amarga de melancolia, explícita no distanciamento com que se narra o episódio do sequestro da garotinha e os seus desdobramentos funestos – num branco e preto que o afasta do melodrama para aproximá-lo da frieza de um registro policial, mimese da frieza com que o crime conjunto foi planejado e executado. 
O filme repercute a busca, cada vez mais reverberada em nossa sociedade, da justiça pelas próprias mãos, diante de um dispositivo legal cada vez mais incompetente e/ou corruptível. A catarse atingida graças à destruição do mal, pedra de toque dos blockbusters - presente mesmo na obra de Christie e em sua versão de 1974 -, ganha, todavia, um segundo plano, ante ao peso sustentado pelo indivíduo que se obriga a assumir um papel que cabe ao Estado – em especial num caso desta natureza. 
A decisão final de Poirot, de não entregar o grupo à polícia, se deve menos à sua magnanimidade – ou à crença de que a justiça finalmente se realizara – e mais a um esforço de interromper a escalada de destruição deflagrada por Ratchett. Longe do Happy Ending, este “Assassinato no Expresso do Oriente” sublinha a linha tênue que separa a lucidez da loucura, o mal do bem, e enfim, o Jekyll e o Hyde que habitam cada um de nós. Para realizar o exercício reflexivo, o filme apresenta-se numa imagem em abismo, teatro dentro do cinema. Não por acaso, Michelle Pfeiffer ganha tanto relevo nesta adaptação, na pele da atriz que organiza um assassinato como a sua última grande performance, o seu canto dos cisnes.