segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Coelho Netto e Euclides da Cunha vão ao cinema: notas sobre certa sessão de 1909

Da esquerda para a direita: Goulart de Andrade,
Coelho Netto e Euclides da Cunha. "A Tribuna", 14 ago. 1909.
cf: https://euclidesite.wordpress.com/imagens/fotografias-de-euclides/

Meses atrás, escreveu-me um pesquisador baiano a respeito de alguns exemplares da correspondência ativa e passiva de Coelho Netto que eu havia doado à UNICAMP. A tal doação aconteceu há mais de dez anos, época em que eu, ainda na graduação, desenvolvia uma pesquisa de iniciação científica sobre a passagem de Coelho Netto por Campinas (ganhei as cartas de presente do irmão da bibliotecária do campineiro Centro de Ciências, Letras e Artes e doei-a ao CEDAE). 
Nos idos de 1902, o já notório literato, então lente no afamado colégio Culto à Ciência, recebeu em sua casa o escritor novato, e ouviu em primeira mão, dele, trechos dos Sertões. Euclides retorna ao Rio, publica a obra e enceta com Coelho Netto uma amizade cuja intimidade explicita-se pela carta que eu, durante um tempo, tive em mãos – escrita pela pena de Euclides, na qual ele refere-se em termos pouco lisongeiros a certo “homem” que aparentemente teria desfeiteado seu amigo. 
O anedotário em torno desses escritores ganharia projeção não apenas devido à envergadura intelectual de Euclides da Cunha, mas ao desdobramento folhetinesco de sua vida (literalmente folhetinesco: os entornos do turbulento consórcio de Euclides e Ana Emília Ribeiro foram devassados pela minissérie da Rede Globo Desejo, exibida em 1990). 
Guilherme Fontes/ Dilermano, Vera Fischer/ Ana Emília e 
Tarcísio Meira/ Euclides da Cunha, Desejo
De volta ao Rio de Janeiro, em 1904, Coelho Netto encontra um prestigiado Euclides da Cunha, agora membro da Academia Brasileira de Letras, e cujo conhecimento do Norte torna-o chefe de certa missão Estatal que visava à demarcação de terras fronteiriças brasileiras em litígio. 
Na Capital Federal, os encontros dos dois literatos eram marcados por registros fotográficos veiculados pela imprensa. E um deles foi, quiçá, o último feito de Euclides em vida. Publicado pelo jornal carioca A Tribuna, em 14 de agosto de 1909, flagrava um Euclides da Cunha recém-saído do Cinema Ouvidor, acompanhado por Coelho Netto e pelo também escritor Goulart de Andrade. Um dia depois da publicação, Euclides seria morto pelo amante de sua esposa, após um embate iniciado por ele, do qual o outro levaria a melhor. 
Que relação teria aquela sessão cinematográfica de agosto de 1909 com o malfadado desfecho do escritor? 
Foto e dedicatória de Euclides da Cunha a Coelho Netto
Divulgada por ocasião da morte do escritor. "Gazeta de Notícias", 17 ago. 1909, p. 1
Fonte: BN Digital
Devo ao Sr. Felipe Rissato – o pesquisador ao qual me referi acima, interessado na correspondência de Euclides da Cunha – porção considerável dos desdobramentos apresentados a seguir; os quais juntam doses iguais de ficção e realidade, como o leitor observará. 
A relevância de Euclides da Cunha faz com que se minore o barulho sobre as circunstâncias de sua morte. Os jornais de então se deliciavam com casos escabrosos de traições e assassinatos – protagonizados, todavia, por classes sociais menos favorecidas. Crimes do tipo alimentavam o fait divers então, dando pasto para notícias de forte tom melodramático; desdobradas, por vezes, em filmes situados no limite entre a ficção e o documento. 
Euclides foi poupado dos detalhes sórdidos, até que, em 1918, não outro que Coelho Netto decide jogar novas luzes sobre o assunto. O fato dá-se durante a conferência “Feições do homem”, proferida por ele em 18 de agosto daquele ano, no Grêmio Euclides da Cunha – texto depois publicado, em resumo, no volume Por protesto e adoração: in memoriam de Euclydes da Cunha, organizado por Alberto Rangel. No entanto, nenhuma dessas narrativas é mais saborosa do que esta abaixo, publicada também por Coelho Netto, desta vez no Livro de Prata (1928). Cito o trecho correspondente (p. 259), a partir da transcrição de Rissato: 

[...] convidei-o a ver um pantafaçudo filme americano, que, então, se exibia na estufilha do Cinema Ouvidor. Goulart de Andrade, com quem nos encontramos, acompanhou-nos. Eram cenas de brutalidade selvagem entre vaqueiros do faroeste - correrias a cavalo, rixas tiroteadas, incêndios, rausos de mulheres com peripécias equestres, da mais desabusada ousadia. Por último, o indefectível adultério. Quando o marido ultrajado, arrombando a porta do rancho, caiu sobre os adúlteros a tiros, Euclydes pôs-se de pé d’um salto, bradando na escuridão da sala: “É assim que eu compreendo!” Surpreendidos com a rebentina, que fizera escândalo, procuramos contê-lo, ele, porém, continuou exagitado, louvando o procedimento do cowboy barbaçudo e já na rua, gesticulando nervoso, ainda rusgava: “Fizessem todos assim e não haveria tanta miséria como há por aí. Essa é a verdadeira justiça. Para a adúltera não basta a pedra israelita, o que vale é a bala”. 

A vida teria imitado a arte? Euclides da Cunha teria agido sugestionado pelo filme que acabara de ver – filme que o teria feito reagir violentamente, à moda dos espectadores primordiais do cinematógrafo –, ou tais peripécias devem-se à pena já notoriamente fantasiosa de Coelho Netto? De todo modo, vale à pena espiarmos naquela fatídica sessão cinematográfica de 1909. 
Gazeta de Notícias, 13 ago. 1909, p. 6.
Fonte: BN Digital
Em 13 de agosto de 1909, data da sessão assistida pelos amigos, o Cine Ouvidor apresentou um conjunto de quatro fitas que nada deviam às sessões cotidianas da casa, compostas por fitas naturais, comédias e dramas. A primeira parte do programa consistia de uma fita natural, Um domingo em Douvenez, descrita como “belíssima fita panorâmica, que pelas suas ricas paisagens deixará os espectadores na mais agradável impressão”. A ela se seguiria A noiva do mexicano, “fina comédia de alto valor artístico”. A terceira e a quarta parte seriam ocupadas por Tristes resultados de uma explosão (ou O Caminho do Homem), “emocionante fita dramática; verdadeira maravilha em assunto e fotografia. Última novidade da importante casa Biograph”, e Fregoli por amor, “hilariante fita cômica, garantindo franco sucesso de risos”. Para fechar a programação, seria apresentada, na matinê, a fita O Ingrato, “sensacional drama, que tem arrancado palmas dos dignos espectadores.” 
Mary Pickford, a protagonista de
A noiva do mexicano
A fita deflagradora da reação exaltada de Euclides da Cunha seria, aparentemente, “A noiva do mexicano” – a suposta comédia seria também exibida no Cinema Brasil em 20 de agosto, sendo então considerada, conforme constatou Rissato, uma “importantíssima fita dramática de extraordinário assunto”. As incertezas quanto ao gênero e as parcas descrições das fitas são próprias desse período de estabilização da indústria, quando ainda se engendrava a maquinaria para criar e emplacar as fitas no mercado. Daí a dificuldade de se saber qual o título original da fita vista pelos três escritores. 
Rissato arrola uma lista de possíveis filmes, entre eles, dois de D. W. Griffith – o artista à época trabalhava para a Biograph; uma vez que “Tristes resultados de uma explosão” foi rodado por daquela casa, não é impossível que “A noiva do mexicano” houvesse saído do mesmo lugar. 
O filme que mais se encaixa na descrição de Coelho Netto (considerando-se as datas de lançamento das fitas e a rapidez com que chegavam ao Brasil) é “The Mexican Sweethearts”, lançado nos EUA em 29 de junho de 1909, de acordo com o IMDB (24 de junho, segundo a Mary Pickford Foundation). 
Mary Pickford – canadense que a revista Moving Picture World classifica como “uma espanhola nativa” – desempenha o papel da “señorita” mexicana que finge estar enamorada do soldado norte-americano para provocar seu namorado. O rapaz enceta uma vingança, sustada no último momento graças a um “engenhoso truque” da jovem. O soldado acaba escapando ileso. No desfecho, os namorados fumam cigarros, algo condizente com a “impetuosa natureza do tipo latino” – conforme o definia a revista supracitada, autora da sinopse do filme. 
Mary Pickford (ao centro) noutro papel de "espanhola",
em Ramona (Griffith, 1910).
Trata-se de uma espécie de “Carmen” com final feliz, o que caminha a contrapelo da descrição de Coelho Netto. No entanto, as cenas de batalha, sobre as quais Coelho Netto se debruça com vagar, foram, parece, um dos pontos altos da fita, tendo, segundo a trivia de Hollywood, servido de inspiração a Cecil D. DeMille. 
Não é impossível que o escritor brasileiro tenha emprestado à história daquela fatídica sessão de 1909 um sopro ficcional, passados já 20 anos de ocorrido o fato; como não é impossível que o enredo deste filme tenha se misturado ao de tantos vistos pelo escritor – um assíduo frequentador do cinematógrafo, malgrado as críticas que voltava às mirabolâncias exibidas sobre o pano branco –, ou que um superexcitado Euclides da Cunha tenha superinterpretado a fita. O título exato da película resta a ser conferido por um pesquisador mais pertinaz – ou mais sortudo. O certo é que, na antevéspera de procurar a sua morte, Euclides da Cunha foi a uma comuníssima sessão de cinema.
*
Como grande parte dos filmes dos primórdios da cinematografia, The Mexican Sweethearts não sobreviveu ao tempo. Não restam nem mesmo fotografias da obra de 3 minutos, cujas informações mais detalhadas podem ser acessadas por aqui.

Um comentário:

disse...

Dani, que história FASCINANTE. Lembrei-me de John Dillinger, que antes de ser baleado viu Manhattan Melodrama, um filme de gângster com Clark Gable, William Powell e sua atriz favorita, Myrna Loy.
Este detalhe final da vida de Euclides é surpreendente e um bocado sinistro. E, acima de tudo, mostra que mesmo o cinema mais primitivo já espelhava a vida real.
Beijos!