sexta-feira, 19 de junho de 2015

Miss Julie (2014), ou, da atualidade de um velho Strindberg

Liv Ullmann, uma das principais musas de Ingmar Bergman, envereda para a direção após pouco mais de uma década (da última vez que comandou a batuta, em “Infiel”, de 2000, Bergman proveu-lhe a história). A obra escolhida é uma adaptação, de seu próprio punho, de “Senhorita Júlia” (1888), obras-prima do teatro moderno, de autoria do sueco August Strindberg. 
O resultado final é deslumbrante. 
Ullmann realizou um conjunto de escolhas precisas, prova da intimidade que tem com a peça que roteirizou. Em primeiro lugar, conteve-se diante da tentação – comum nos realizadores contemporâneos – de modernizar a obra: Juliette Binoche tentou-o recentemente, aferindo com a empreitada, pelo que eu li a respeito, resultados dúbios (no Brasil, Alessandra Negrini trilhou o mesmo caminho, recebendo da crítica uma resposta igualmente pouco animadora). 
Jessica Chastain (Mis Julie) e Colin Farrell (John)
A única alteração importante que fez a atriz-cineasta diz respeito à localização geográfica da história: a Irlanda do Norte rural, ao invés da Suécia. A mesma noite de solstício de verão, a mesma quantidade exígua de caracteres (que dão ao filme um sopro teatral, sustentado pelos diálogos, ainda que o cenário escolhido seja apropriado com perspicácia). A inconteste força dramática da história, sua patente atualidade – malgrado ela se passar no crepúsculo do século XIX –, demonstra quão desnecessária é a sua atualização ao contexto contemporâneo. 
Strindberg é, ainda hoje, moderno. Aliás, hoje, como nunca, pode ser compreendido em sua plenitude. 
Sua senhorita Júlia é uma melancólica. Precisou de todo século XX para que a sua alma pudesse ser perscrutada. Em 1888, data de seu nascimento, ela era uma anomalia, como tantas outras mulheres de fecho de século criadas por homens como Strindberg e Ibsen – homens do norte, tão diferentes de nós, tropicais, como a imprensa brasileira insistia em lembrar, cada vez que uma daquelas estranhas heroínas subia à nossa cena. Ullmann percebeu bem isso e, como é mulher – isso, especialmente, é fundamental –, conseguiu compreender bem a personagem, e apreender em extensão o histórico conflito existente entre os gêneros. 
Julia vive de vagar pelos campos, em nostalgia constante. O ambiente rural, importante para a psicologia da personagem, ocupa um primeiro plano na “Miss Julie” de Liv Ullmann, em sua magnificência opressora. O conflito entre drama romântico e drama moderno exacerba-se com força no filme, naquele quadro pitoresco de uma Irlanda rural palmilhada por uma mocinha povoada pelos romances históricos de Walter Scott e Alexandre Dumas. Julia vivia numa Era pós-Madame Bovary, senhora a quem a literatura romanesca se mostrara tão malsã. 
Samantha Morton/Kathleen
O desenvolvimento galopante da ciência e da técnica expulsaram as heroínas românticas do paraíso, arrastando à lama aquelas que insistiam em viver de sonhos. Julia é uma dessas desgraçadas. Órfã de mãe desde menina, encontra companhia entre os heróis da ficção. Embebida daquela literatura que rompia com as hierarquias sociais, vislumbra a possibilidade de um romance com um serviçal. Strindberg é preciso no burilamento desta personagem que vive o limiar do século XX presa aos liames do passado. 
 Aquela época de perda da inocência ganha corpo, em cena, à medida que se desenvolvem os caracteres de Julia e John. A poética aliteração que forma seus nomes, a prosa comovente que sai da boca de John, confundem tanto a mocinha quanto o espectador. O rapaz garboso que fala como um lord se revelará, ao termo da obra, um biltre – destruição simbólica de um século de verborragia sentimental. Para escapar à sua realidade vazia, Julia passa a noite de solstício criando para si um amor de ficção. A contraparte no jogo é John, que logo percebe a carência da jovem e se embui do papel de herói. 
Ao longo dos três atos da peça, Strindberg empreende um movimento de questionamento e destruição das hierarquias sociais – destruindo, de roldão, as tópicas buriladas pelo Romantismo. 
Atinge, no desfecho, não a clarividência, mas a desesperança. Em sua obra, a sociedade é pintada como espaço de conflito. Nalgum momento depois de Julia obrigar John a beijar-lhe os pés – lembrando-lhe do lugar subalterno que ele ocupava na sociedade –, nós, espectadores, vislumbramos uma possibilidade de salvação para ambos: quando o rapaz miserável abre seu coração à jovem aristocrática, antevemos um meio termo, entre a base e o topo da pirâmide social, onde ambos poderiam se abrigar. 
No entanto, logo caem as máscaras. Depois de se entregar a John, Julia é obrigada a encarar as inexpugnáveis convenções sociais, que punham uma nódoa no futuro da jovem deflorada. O discurso do rapaz transpira o indissolúvel conflito de gêneros – patente mesmo hoje, o que se dirá, então, em fins do século XIX? Julia, como a Nora de Ibsen (da "Casa de Bonecas") exacerbam os séculos de tolhimento a que haviam sido submetidas as mulheres.
Jessica Chastain
Por essas veredas tortuosas, Liv Ullmann conduz suas três personagens com brilho análogo. Jessica Chastain eu julgo que nunca esteve tão bem como neste filme, bela e frágil como tantas donzelas criadas pelos pintores Românticos. O filme todo ganha, aliás, uma dimensão de tableau – remissão de aparência nostálgica, mas, no final das contas, amarga, da sociedade que a arte edulcorara. Sua cena de suicídio, de grande beleza, remete à iconografia romântica referente à morte de Ofélia – Ullmann percebe a irmandade de alma das duas personagens, reduzidas, ambas, ao jugo da sociedade machista. Colin Farell penetra a dualidade de John, imprimindo-lhe com sagacidade um carregado sotaque irlandês que a pátina da “civilização” mal encobre. Samantha Morton é uma perfeita Kathleen, a cozinheira responsável, na peça, por verbalizar todos os preconceitos inerentes à “opinião pública”. 
Liv Ullmann criou um filme de comovente densidade, ao qual eu convido fervorosamente o público a visitar. Em tempos bicudos como os que estamos atravessando – não apenas no que se refere à produção cinematográfica, mas ao ultraconservadorismo que avassala nos campos sexual, político e religioso –, precisamos de obras que iluminem as nossas fissuras, e que nos apontem a luz.
Ophelia (John Everett Millais, 1851-1852)