quarta-feira, 1 de abril de 2015

O futuro do cinema está na TV. Parte 2: “Hannibal”

Comecei, na resenha passada, uma série de dois textos que se propunham a discutir as qualidades “cinematográficas” das séries televisivas. Supus, ali, que o cinema mainstream perdia o interesse em prol da TV, para onde estavam migrando os roteiristas de talento e os stars. Aproveitando-se do recente desenvolvimento técnico, que parece ter tornado o público desdenhoso da tela grande em prol da comodidade oferecida pela aparelhagem individual (telas com extensão e definição cada vez maiores, programação sob demanda etc.), incrementaram-se os investimentos na dramaturgia televisiva. 
Pululam as séries de qualidade: “Breaking Bad” (2008-2013), “Game os Thrones” (2011-...), “Homeland” (2011-...), “House of Cards” (2013-...). A lista não exaustiva atesta o viço do gênero, que aqui receberá um recorte puramente pessoal. No post anterior, propus-me a deixar minhas impressões sobre as produções televisivas de dois atores saídos da Sétima Arte. Ali, falei sobre o “Sherlock” de Benedict Cumberbatch. Aqui, falo sobre o “Hannibal” (NBC-USA, 2013-...) de Mads Mikkelsen. Dois grandes atores, dois grandes personagens, duas produções que não fazem feio quando aproximadas das anteriores extrações cinematográficas das histórias. 
“Hannibal” tem atrás de si obras cinematográficas mais auspiciosas que “Sherlock”. Uma, pelo menos: “O Silêncio dos Inocentes” (“The Silence of the Lambs”, Jonathan Demme, 1991) é uma obra-prima de thriller, com inspiradores Anthony Hopkins no papel do canibal assassino Dr. Hannibal Lecter e Jodie Foster como Clarice Starling, a jovem agente do FBI que precisa da ajuda dele para agarrar um serial killer. Quando lançado, em 1991, o filme provocou um daqueles clarões que raras vezes se vê no cinema. Não à toa, arrebanhou todos os Oscars principais, como antes – se não me engano – somente fizera “Aconteceu naquela noite” (“It happened one night”, 1934). Distendeu o limite de seu gênero, como Frank Capra havia feito com os limites da comédia na longínqua década de 1930. Temos ali um assassino frio, sádico, vilânico e, no entanto, elegante, charmoso e irresistível. O mais refinado dos anfitriões, não fosse um pequeno detalhe: ele servia aos convivas as carnes dos entes que matava. 
“Silence of the lambs”, como era de se esperar, teve várias sequências: “Hannibal” (de Ridley Scott, 2001), com o próprio Hopkins no papel-título e Julianne Moore como a agente Starling; “Dragão Vermelho” (“Red Dragon”, Brett Ratner, 2002), no qual Hannibal/Hopkins contracena com gente do calibre de Edward Norton, Ralph Fiennes, Harvey Keitel e Emily Watson; e “Hannibal – a origem do mal” (“Hannibal Rising”, Peter Weber, 2007), com o papel-título desempenhado por Gaspard Ulliel. Nenhuma dessas produções, todavia, atingiu a sutileza e a dubiedade da obra original. 
Nenhuma, até o “Hannibal” protagonizado pelo ótimo Mads Mikkelsen – ator dinamarquês que, malgrado a notoriedade adquirida em seu país desde meados dos anos 90, foi notado pela América apenas recentemente, quando Cannes deu-lhe o prêmio de Melhor Ator (por “A Caça”, em 2012). Mikkelsen tem o physique du role perfeito para desempenhar o Dr. Hannibal Lecter. Lábios e nariz finos, rosto anguloso, olhos perscrustadores. Um corpo vigoroso, ainda que delicado. Um todo sedutor, porém, uma beleza bem pouco ortodoxa. O conjunto proporciona ao personagem a ambiguidade do original. Ambiguidade expressa logo no primeiro plano em que Mikkelsen aparece: um plano americano em que ele, deleitando-se com o sabor da iguaria que viera de deglutir, imerso na sombra, parece um daqueles espécimes gloriosos de homens desempenhados por Emil Jannings sob a batuta de F. W. Murnau. 
O garbo do ator atinge uma importante dimensão de Hannibal Lecter, que é a de bon vivant. Antes de ser criminoso, o médico é um esteta: que abandonou o exercício cotidiano da medicina para realizar um exercício antropofágico com os corpos de seus antigos pacientes – como se pedisse a eles a retribuição de seu trabalho. A alimentação para si não é um exercício comezinho: é ato refletido, esculpido à perfeição, desde a primordial escolha da carne – por meio de uma insólita agenda de endereços que ele usa à guisa de livro de receitas –, passando-se pelo ato criminoso – encenado tal e qual uma peça de teatro –, e enfim, a preparação suntuosa da iguaria, para convivas escolhidos a dedo. 
Observá-lo causa no espectador um misto de ojeriza e deleite. A surrealidade dos atos do hábil profissional é sublinhada por uma cinematografia que os pinta com uma artesania clássica, construindo um distanciamento irônico dos objetos que toma por tema – vejam-se as fotografias de divulgação da série (espalhadas pela resenha) a contrapelo desta abaixo, de autoria do Renascentista Giuseppe Arcimboldo (séc. XVI). Hannibal destroça as suas vítimas como um perfeito lord, ao som dos acordes de Haendel – ora dedilhados no cravo que ele possui em casa, ora reverberados por uma orquestra completa, enquanto ele amacia pulmões ou produz salsichas a partir de intestinos. “É preciso que eu lhes avise: nenhum desses pratos é vegetariano”, diz aquele homem adepto dos descalabros dos festins da realeza clássica aos indivíduos de nossa sociedade contemporânea, politicamente correta, “sustentável”. 
Retrato do patrono de Arcimboldo, imperador vienense Rudolf II (1590),
feito a partir de frutas e legumes.

Fonte: http://www.smithsonianmag.com/arts-culture/arcimboldos-feast-for-the-eyes-74732989/ 
O sadismo de Hannibal é tão over, tão insólitos são seus desdobramentos, que acabamos por saboreá-lo com prazer. A faceta realista – e, portanto, pungente – da trama fica por conta da personagem de Will Graham (que aparecera no “Hannibal” de 2002, na pele de Edward Norton). Na série, Graham/ Hugh Dancy é um homem sensível, transformado em consultor do FBI por ser dotado de uma habilidade extrema de empatia – consegue colocar-se à perfeição na pele dos algozes e das vítimas, para, assim, poder refletir sobre suas motivações e atitudes. A série abre exacerbando a sua cenografia e o modus operandi de Graham: um flash-back mostra ao espectador, em riqueza de detalhes, como o consultor teria executado uma família. Só mais tarde o espectador perceberá que, a despeito do que as imagens mostram, Graham não é o criminoso. 
Mas a ambiguidade já está colocada: ao longo do drama, o envolvimento emocional com os crimes levará o rapaz a desenvolver um problema neurológico (que o Dr. Hannibal Lecter – também psicoterapeuta de Graham – acompanha num só tempo com curiosidade científica e com preocupação pelo amigo que a fatalidade colocara em seu caminho) que bastante provavelmente o fará trespassar a linha que separa a sanidade da insanidade, a lei do crime (eu ainda não cheguei nesta parte). É dilacerante vê-lo esforçar-se para calcar chão na realidade, enquanto que a figura mefistotélica de Hannibal empurra-o na via íngreme que o levará à exploração vertical dos meandros de seu “eu” atormentado.

2 comentários:

ANTONIO NAHUD disse...

Grande resenha, Dani. Fiquei muito curioso. Vou assistir HANNIBAL (o Mads Mikkelsen é arrebatador!). Gosto demais de O SILENCIO DOS INOCENTES e o HANNIBAL com a Julianne Moore.

Danielle Crepaldi Carvalho disse...

Obrigada pela delicadeza, Antonio!
Veja a série, suponho que você gostará muito. Ela é, por exemplo, mais bem resolvida que o Hannibal com a J. Moore. E Mikkelsen é um escândalo, mesmo!

Bjos
Dani