domingo, 22 de março de 2015

O futuro do cinema está na TV. Parte 1: “Sherlock”

Acredito que, se porventura a indústria do cinema se perder de vez na imbecilidade que cada vez mais a acomete, ela será heroicamente salva pela televisão. 
Quem diria, a televisão; o fantasma das companhias cinematográficas dos anos de 1950-1960: em 1957, o clássico Meias de seda (Silk stockings) já cantava, irônico, a necessidade de se produzir filmes “Cinemascópicos” e “Estereofônicos” para enfrentarem a caixinha de madeira que ganhava os lares em progressão ascendente. 
Hoje o quadro inverteu-se. O cinema standard assimilou toda a eloquência tecnológica cantada por Fred Astaire – e mais alguma. Hoje é 3, 4, 5D. Imax, X-D, e, paradoxalmente, cada vez mais reduz o espectador à assistência passiva de clipagens inócuas, fábulas prenhes de efeitos especiais mas vazias de reflexividade e poesia, dubladas para mimar cada vez mais a preguiça mental do público. 
Nessa era de tecnologia digital, que para o bem e para o mal nos influencia a todos, o cinema encontrou na televisão um inusitado competidor, não apenas de público, como no que toca à qualidade artística. 
Os canais a cabo, que desobrigam o público a ver inserções comerciais que chegam a 25% da programação, e o Netflix, que reintroduz nos seriados o efeito de continuidade que os tece, tornou a experiência da TV tão rica quanto à do cinema. Ou mais, a depender do objeto que a telinha reverbera. 
Escrevo essas notas como observadora estreante no assunto. Sou cinéfila, raramente vejo televisão e não assino TV a cabo (e companhia). Decidi apenas recentemente experimentar este caminho pelo qual já enveredou uma parte considerável de artistas da Sétima Arte, já que uns aos quais eu muito admiro decidiram me deixar ao deus dará nas salas de cinema... 
Acertada decisão, a minha. 
Adquiri, pelos meios mais escusos, Sherlock (BBC-UK, 2010-...) e Hannibal (NBC-USA, 2013-...). 
Sherlock é a série britânica que lançou ao estrelato global Benedict Cumberbatch, que até 2010 tinha uma carreira não desprezível, mas sobretudo local. O modo passional como a obra foi recebida – são impressionantes 4,5 milhões os seus seguidores no Facebook – explica-se não só pelo fascínio que o brilhante detetive gerou desde que foi criado, em fins do século XIX (o museu-casa que os londrinos construíram em sua homenagem, na 221B Baker Street, tem até hoje uma frequentação expressiva), como pela qualidade intrínseca da série. 
Sherlock supera os filmes de Guy Ritchie (de 2009 e 2011, com Robert Downey Jr. e Jude Law nos papéis de Holmes e Dr. Watson) pela inteligência colocada a serviço da elaboração das narrativas  textos que se apropriam com risonha ironia dos textos-fontes; delicioso humor inglês, a rir com finesse de si próprio. As peripécias de Sherlock Holmes e seu fiel escudeiro são amoldadas ao contexto contemporâneo, decisão acertada, já que o Holmes original também era produto de seu tempo (de galopante desenvolvimento nos campos da tecnologia e da medicina, que dotaram de cientificismo o olhar ao campo criminal). 
A migração da Era Vitoriana à Londres contemporânea não se dá sem tropeços – todos bem aproveitados para a factura do drama. Os fãs de Conan Doyle se lembrarão, por exemplo, que seu herói fazia uso de substâncias pouco ortodoxas para manter o nível elevado de funcionamento que o seu cérebro superior pedia. Hoje, em que a assepsia social dominante nos colocou a léguas do liberalismo pregresso – quando drogas como a cocaína eram livremente comercializadas em farmácias – Holmes vê-se obrigado a recorrer aos adesivos de nicotina para manter o vício até mesmo do cigarro (e a sua integridade mental). 
A personagem equilibra-se, portanto, entre o politicamente correto requerido pela sociedade e os descalabros que o seu organismo demanda. Conan Doyle insere Holmes em meio a fumadores de ópio, a deleitar-se no vício da droga e no vício da ação. Mark Gatiss e Steven Moffat, os roteiristas da série televisiva, fazem o Dr. Watson casualmente trombar com o amigo, ao buscar um vizinho junky num inferninho londrino. Levado para o laboratório, onde tem a sua urina testada (e não aprovada), Holmes vira objeto dos moralismos do amigo e da técnica do laboratório com quem ele ocasionalmente trabalha. Responde com o meio-riso de alguém que sabe estar num entre-lugar: na sociedade atual, o paradoxo da liberdade resume-se no fato de, na verdade, não termos liberdade nenhuma. 
Sherlock opera a dessacralização da obra de Conan Doyle, como Doyle o fez com a obra de Edgar Allan Poe, quando introduziu o dedutismo flamboyant de sopro folhetinesco como resposta à alta literatura que Poe erigiu em contos como “Os crimes da rua Morgue”. “Deixe de ser exibido”, é o que o amigo – e porto-seguro – Watson lhe diz, na série, ao vê-lo vestir um daqueles chapéus bobos que custam uma fortuna na lojinha da 221B Baker Street; ao vê-lo endireitar a gola de seu sobretudo; ou ao percebê-lo esgrimir ad nauseam suas habilidades dedutivas. E tal exibicionismo a trama mimetiza em sua estrutura, ao materializar à audiência os processos mentais de Sherlock Holmes, por meio de uma narrativa de qualidade raras vezes atingidas: de asfixiante agilidade, eivada de elipses e de estratégias artificiosas, como os ainda hoje ousados falsos flashbacks
A dessacralização do original é, ao mesmo tempo, uma homenagem. Essa migração de suporte e de linguagem promove uma reinserção social da obra original: mostra seu potencial comunicativo, sua atualidade. O clássico “Um estudo em vermelho”, o caso em que os dois amigos se conheceram, torna-se, na série, “Um estudo em pink” - e será divulgado por Watson não por meio de um livro, mas de um blog que logo vira hit; enquanto que “Os cães de Baskerville” originais tornam-se, na leitura televisiva, os remanescentes de um projeto secreto cujo objetivo era uma pesquisa médica totalmente destituída de ética - rescaldo das Guerras do século XX. 
A leitura contemporânea obriga as atualizações. Na nossa sociedade cada vez mais medicalizada, a síndrome que atribuía mistério ao Holmes original ganhou nome e endereço: ele é um “high functioning sociopath”. Seu pendor à cocaína é, aqui, tratado como vício grave – que obriga Watson e a sua senhoria, Mrs. Hudson, a constantes devassas em seus aposentos. 
No entanto, ao contrário do que se pode supor, Mr. Holmes não perdeu o seu éthos romanesco. 
Que coisa mágica é o cinema: mesmo este, reduzido às dimensões das telas – cada vez maiores, é verdade – das nossas casas. A série dá ao detetive uma densidade emocional de que as histórias de Conan Doyle carecem – já que os cânones do romance policial pediam que se concentrasse no crime e em sua elucidação, limando-se da narrativa as digressões filosóficas. A escolha de um ator superior como protagonista garante profundidade à história. Benedict Cumberbatch, ótimo ator cômico e dramático, impregna seu Holmes de exibicionismo e de graça. Muito graças a ele e a seu comparsa Martin Freeman, Sherlock verte inteligência e bom-humor, levando o espectador na palma da mão, como apenas os clássicos sabem fazer. 

Em breve, a 2ª e última parte de “O futuro do cinema está na TV”: Hannibal.

quinta-feira, 5 de março de 2015

"Birdman (ou a inesperada virtude da ignorância)": Hollywood novamente desnudada

O cinema gosta imensamente de falar sobre si. Os filmes que se voltam ao aparato produtor das imagens cinematográficas nasceram praticamente com o advento da arte. Antes de uma consolidada obra-prima como “O homem da câmera” (1928, Dziga Vertov), proliferaram-se as fitas de maior ou menor duração e qualidade atentas ao dispositivo fílmico, a esmiuçarem ora os perigos se se ser flagrado pela câmera (cinematográfica ou fotográfica); ora o fascínio gerado pelas imagens (ou a máquina que as produzia). 
Antes de trajar as vestes de seu notório vagabundo, Charlie Chaplin deixa-se filmar passando e repassando defronte da câmera que registrava certo evento automobilístico, a atrapalhar o trabalho do operador e a corrida. O filme, Kid auto races at Venice, data de um século. Depois dele, outros tantos – vários protagonizados por Chaplin – se debruçariam sobre a questão, procurando num só tempo romper com a ilusão de realidade criada pela câmera e sublinhar o papel da indústria criadora de ilusões, a transformar gente comum, sarrafos e papelão em vidas e mundos tão deleitantes. 
O potente imaginário criado pela sétima arte deu pasto a algumas reflexões críticas – também transformadas em películas – de grande agudeza. Uma das mais eloquentes é “Crepúsculo dos deuses” (Sunset Boulevard, Billy Wilder, 1950) - muito amado e já resenhado por esta que vos fala – retrato ácido do mundo das estrelas cinematográficas decaídas. 
A metalinguagem atinge ali o mais alto grau, porque a estrela em questão - Norma Desmond – é desempenhada por uma das principais atrizes do cinema silencioso, por vinte anos legada ao ostracismo: Gloria Swanson. Além disso, dividem com ela a cena figuras celebérrimas dos anos 20, igualmente esquecidas nos 50, como o cômico Buster Keaton e o diretor Eric Von Stroheim (este, o ex-marido e o mordomo que mima a megalomania da personagem da atriz, no filme). Sunset Boulevard revela o que jazia para além do mundo luzidio que o cinema norte-americano criava: o esquecimento, a loucura e a morte. 
O recuo temporal é pródigo para operar essas investigações críticas. Foi assim com o filme de Billy Wilder - que, nos anos 50, volta olhos aos atros do cinema silencioso, destronado no fim dos anos 20. E é assim com Alejandro Iñarritu, cujo Birdman (ou a inesperada virtude da ignorância) investiga o cotidiano de um decadente ex-super-herói de blockbuster norte-americano. 
Também vinte anos separam a ascensão da queda. Mais que o tempo do desenrolar de uma geração, o período em questão marca uma ruptura no modus operandi da indústria cinematográfica. Birdman é o Crepúsculo dos Deuses da nossa Era. 
Na obra de Iñarritu, a transição pontua-se pelo advento da tecnologia digital: a imagem fidelíssima da realidade – embora paradoxalmente composta de combinações numéricas destituídas de qualquer humanidade – a obrigar o artista às intervenções cirúrgicas que, ao rejuvenescerem-no, transformam-no num arremedo de si mesmo; as redes sociais, a criarem e destruírem reputações no espaço de dias (a lógica “viral” da nossa sociedade contemporânea, para a qual o “sucesso” torna-se um fim em si mesmo, pouco importando o motivo); a excelência técnica que permite a criação dos universos outrora apenas sonhados pelos quadrinhos, cooptando grandes intérpretes dramáticos à realização de fantasias adolescentes. 
Birdman não é um ser, é uma máscara: contemporâneo aos super-heróis cujas existências e estripolias foram tornadas possíveis pela tecnologia, como Superman ou Batman – este último, aliás, outrora protagonizado pelo intérprete que dá vida à Birdman, Michael Keaton, escolha simbólica que aproxima esta obra da de Wilder. 
Birdman, como Norma Desmond, são alter-egos não apenas de Keaton e Swanson, mas de um amplo corpus humano produzido pela indústria cinematográfica, rapidamente rotulado e descartado tão logo pare de corresponder às expectativas de lucro dela. 
A perspectiva de se transformarem artistas em simples mercadorias para o rápido consumo e descarte das massas é dilacerante. Porém, a equação é complexa, e Iñarritu ilumina com maestria as várias facetas da questão. Na superfície, Keaton-Riggan-Birdman é um objeto de sucesso midiático: narcisista ao extremo, incapaz, por exemplo, de aceitar repreendas a certo medíocre trabalho que realizara. Perde a esposa que lhe critica a obra por confundir, segundo ela, amor com admiração. É, pois, o retrato verossímil de um sem número de artistas mimados, mais talentosos ou menos, porém infantilizados e carentes, aos quais os amigos devem se comportar como séquito para serem admitidos no seu entorno. 
No entanto, debaixo dessa superfície putrefata – que bem ou mal é produto da indústria – jaz um caudaloso rio de insuspeitada profundidade, onde o lodo e os belos exemplares marinhos disputam espaço ombro a ombro. Donde a “inesperada virtude da ignorância” do título. Ao longo do filme, Riggan revelará sua alma complexa. Por detrás da megalomania explícita deste has-been que deseja ascender culturalmente da Hollywood à Broadway, atuando para isso como ator principal, diretor e adaptador da obra literária que deseja levar à cena, há um homem movido pela intuição, cheio de um entusiasmo juvenil, a recusar terminantemente o rótulo que lhe dera (e ainda poderia lhe dar) fama e fortuna para viver em plenitude seu ofício de ator. 
Desejo que mal encobre um viés de insânia. O homem que aporta na Broadway sem conhecer seus códigos, afundando-se em dívidas para levar adiante seu sonho, precisa ter em si uma dimensão de loucura. Dimensão explicitada pela exacerbação de seu dominador duplo, não outro que o Birdman que o levara às culminâncias da glória e do desespero. 
A persona impregna-se da personagem. Iñarritu, também coautor do roteiro, depreende bem a complexidade das relações psicológicas fomentadas pelas telas. Norma Desmond, recém-vinda de assassinar o amante, desde as escadas de “Crepúsculo dos Deuses” rumo à punição como se fora Salomé vinda de encomendar o assassínio João Batista, a se entregar deleitada aos seus algozes. Embaralham-se as dimensões da realidade e da ficção; a estrela decaída julga-se dentro de uma película de Cecil B. DeMille. Já Riggan coabita empiricamente com Birdman. A projeção cinematografia de si representa tudo o que ele não é - a intrepidez, o vigor, o heroísmo – e lhe pede, como paga da proteção que lhe dá, que ele ceda à frutífera indústria do blockbuster
A premissa de Birdman é sedutora por si só, mas a obra tem seus sentidos potencializados pelas opções estéticas que faz. Há nela uma mistura imprevista de ironia e poesia que, se observa o ridículo daqueles super-heróis de borracha (e da indústria que os cria em série), igualmente procura compreender por que eles são tão amados pelo grande público. Assim, faz emergir em primeiro plano o papel do cinema como a fábrica de mitos do século XX. 
Ambivalência que é construída pela música. Dividem espaço em Birdman uma quase que onipresente percussão jazzística (representada pela bateria que pontua o palmilhar do protagonista, como se representasse as batidas de seu coração) e uns vestígios de música clássica (os violinos a tecerem as heroicas aventuras do personagem-título). E tudo se embaralha: o lirismo de Mahler embalando as cenas de ação, a agressiva percussão conduzindo as cenas as mais românticas. 
Iñarritu, como Billy Wilder, puxa o véu do imaginário e desnuda a realidade crua que ele esconde. Mas, num como noutro, o olhar crítico à arte está em razão direta do amor que ambos nutrem por ela. Birdman é fascinado pelo mundo bizarro que busca narrar e destruir. Tanto que sua factura cênica reencena a mise-en-scène do gênero que critica. 
Ao optar pela subjetiva direta, lendo o mundo pelos olhos do perturbado protagonista Riggan, recuperando assim a onipresença de Birdman, o filme se entrega a pirotecnias cinematográficas (excelentemente realizadas pela direção de fotografia de Emmanuel Lubezki, já responsável pela qualidade técnica de “Gravidade”) das quais os blockbusters estão coalhados. Como o super-herói, Riggan flutua, voa, destrói os objetos com a força da mente. O clímax da história é menos o seu final em aberto, com Michael Keaton saindo pela janela rumo a um destino ignorado, do que a cena da cidade sendo destruída por seres alienígenas, e salva por Birdman e pela força policial – glosa de uma infinidade de filmes-catástrofes rodados por Hollywood. 
O que difere ali é a música. A cena de ação é pontuada pelo leitmotiv da personagem de Birdman, um lírico trecho da 9. sinfonia de Mahler, repleto dos violinos que a história do cinema nos mostrou talhados às cenas de amor. Tudo comporta em si o seu avesso. Afinal, se o brilhante Michael Fassbender já está usando uma capa de X-Men, se Robert Downey Jr. enverga com orgulho sua carapaça de lata, o cinema-pipoca não pode ser tão ruim assim. 
Esta crítica à indústria cinematográfica mal esconde o fascínio que seu criador tem por ela. Aliás, que todos nós, como eternas crianças que querem ser entretidas, temos por ela. Perdoamos as falhas de nossos objetos de afeto, ingenuamente desejamos reformá-los, mas o que acabamos mesmo é sendo irremediavelmente enredados por eles.