quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Shakespeare na Broadway: “A Megera Domada” segundo Cole Porter

Hollywood soube como ninguém devolver Shakespeare à sua substância espetaculosa e popularesca. Bom exemplo disso é Kiss me Kate (Dá-me um beijo, George Sidney, 1953), adaptação cinematográfica do musical da Broadway de sucesso impressionante na Nova York da virada dos anos de 1940-1950: foram 1077 performances entre 1948 e 54 (e um Tony Award em 1954). A peça promove uma releitura da shakespeareana A Megera Domada de multiplicada verve, já que, além de se aproveitar do humor inerente à obra do bardo, inspira-se nas rusgas reais ocorridas entre o célebre casal Alfred Lund e Lynn Fontane, nos bastidores da montagem da Megera..., na Broadway de 1935. 
Kathryn Grayson é Catarina em cena
Dorothy Kingsley realiza a adaptação do texto à cena musicada, Cole Porter responsabilizando-se pelo score enquanto letrista e músico. O resultado é grandioso. O texto é bem-humorado e inteligente, a alinhar com ritmo pulsante e indisfarçada ironia a comédia elegante, os desdobramentos de pretensão policialesca e o discurso metalinguístico. E a música enfeixa o que de melhor Cole Porter já compôs: “So in Love”, “Too darn hot”, “Why can't you behave”, por exemplo, inscritas no imaginário ocidental graças às interpretações de gente como Frank Sinatra e Tony Bennet (André Previn e Saul Chaplin concorreriam ao Oscar pela direção musical do longa). 
O enredo se apropria frouxamente do ocorrido entre o casal Lund e Fontane, com a diferença de que, aqui, a obra de Shakespeare é relida para um contexto contemporâneo, de vicissitudes amorosas, jazz, coristas picantes de teatro cômico-musicado e pseudo-gangsters – apropriação das várias facetas da cena cultural norte-americana de virada do século. A leitura é, como eu disse, metalinguística. Tematiza a montagem da tal adaptação de A Megera Domada, centrando-se em três momentos específicos: a escalação do elenco, os instantes antecedentes à estreia do espetáculo e, enfim, a récita (cerne do filme). 
Cole, Lili, Fred e Lois
A ideia não é nova. Basta lembrarmo-nos de Judy Garland e Mickey Rooney “putting on a show”, naquele conjunto de filmes que rodaram entre fins de 30 e princípios de 40. A estratégia narrativa, que garantia aos filmes maiores liames com a realidade (afinal, a inserção dos números musicais pareceria mais verossímil quando relacionados diretamente à ação dramática), marcharia com vigor pelos anos de 1940 e 1950 a fio: Cantando na chuva (Singin' in the rain, 1952) e A Roda da Fortuna (The Band Wagon, 1953), já tratados aqui no blog, são apenas os exemplos mais notórios. As cinematografias de Carmen Miranda e Doris Day, por exemplo, estão coalhadas de exemplos do tipo. 
Bianca/Lois e os três pretendentes
A novidade está na imersão da obra na estética teatral e no seu campo simbólico. Cole Porter, que então fenecia (ele sofria havia anos com as sequelas de um acidente que lhe destroçara as pernas), torna-se personagem, compositor do score também na diegese do filme – homenagem sensível, ainda que bem-humorada, a um dos pais do cancioneiro americano. Ele (Ron Randell no filme) apresentará pessoalmente a obra à Lili Vanessi (Kathryn Grayson), a egocêntria estrela de primeira grandeza da Broadway cujo coração de pedra estilhaça-se tão logo seu ex-marido Fred Graham (Howard Keel) enceta consigo o dueto de “So in love”. No fundo, ambos são dois românticos – descobriremos nos instantes antecedentes à estreia, enquanto, cantando o número executado pelos protagonistas de certo espetáculo no qual não passavam de coristas (“Wunderbar”), lembram-se dos anos de início de casamento, quando viviam na penúria mas sobrava amor. 
Porém, qual caixa de Pandora, a doçura subjaz à infinidade de cobras e gafanhotos que brotará de suas bocas (e gestos) ao longo do filme – e da peça dentro do filme –; neste palmilhar de mão-dupla que a arte e a vida perfazem. Já na primeira parte da trama, o idílio de “So in love” é quebrado com a entrada da terceira ponta do triângulo amoroso. Ann Miller (Lois Lane), a nova namorada de Graham, a quem caberá o papel de Bianca na peça, surge peremptoriamente apenas para dançar ao grupo “It's too darn hot”: sobram pernas, desembaraço e sensualidade; nascendo do conjunto a animosidade de Lili pela jovem que desempenharia sua irmã mais jovem – potencializada animosidade, já que existente dentro e fora da cena. 
Prepara-se a tensão para a porção central do filme, a récita e estreia, quando os nervos já à flor da pele serão tangidos por infindos quiproquós. Lois Lane mantém um segundo namorado, por sinal, seu par-romântico também em cena, rapaz de moral duvidosa responsável por plantar nos bastidores do teatro (e surpreendentemente também na cena teatral) uma dupla vinda do submundo do crime; enquanto que Lili Vanessi está de casamento marcado com Tex Callaway, um rei do gado texano que a tiraria do burburinho nova-iorquino rumo à vida rural que ela pedira a Deus – uma falácia, claro: quem imaginaria a classuda primadona tangendo bois nalgum rincão? 
Na peça criada na diegese do filme, A Megera Domada torna-se palco da exacerbação de uma tensão sexual crescente: realizada diante do público de forma simbólica; eliminada catarticamente. Catarina agride Petrúquio, que agride Catarina: a violência vigorosa, matizada por demonstrações pontuais de afeto, torna-se um sucedâneo da relação sexual. Kathryn Grayson e Howard Keel, pares românticos ocasionais na Hollywood de então, encontram-se como nunca nesses papéis: a pequeneza e a ruivice combustiva da atriz como contraparte à masculinidade do enorme galã. 
Kiss me Kate destaca-se dos filmes do gênero rodados no período ao dar um passo além do romantismo asséptico que lhes era comum. A originalidade espraia-se para o modo como as canções costuram-se à trama. A adaptação da peça ao cinema não lhe elimina a vocação teatral, daí a primazia às canções em detrimento do texto falado. Também, a invulgar relevância dada à coreografia. 
Em cena, Bob Fosse e Carol Haney
O filme encena a história da dança popular americana, iluminando-lhe mesmo umas possibilidades de futuro auspicioso: a dança de salão, o balé, o sapateado, coreografados por Hermes Pan (o histórico partícipe das stravaganzas de Ginger Rogers e Fred Astaire ganha até mesmo uma afetuosa aparição solo), dividem espaço com a experimentação; o breve número musical coreografado e dançado pelo grande Bob Fosse apresentando-o para o mundo. Na história do cinema musical norte-americano, Kiss me Kate está no meio do caminho entre Cantando na Chuva e Cabaré  (1972). Glorioso, como um e outro.

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Garota Exemplar/ Gone Girl (2014)

Fui ver o lançamento cinematográfico sobre o qual corre, atualmente, um rio de tinta: Garota exemplar, título nacional (estranho) para o norte-americano Gone Girl, filme adaptado do bestseller homônimo de Gillian Flynn e dirigido pelo ótimo David Fincher. Não conhecia o livro – que, parece, levantou tanta celeuma quanto as sagas Potter e Crepúsculo e o romance açucarado A culpa é das estrelas. E, aproveitando que eu estava vivendo como que numa caverna nos últimos meses, decidi continuar na ignorância no que tocava à sua trama até que eu cruzasse pessoalmente com ela, numa sala de cinema. 
O filme é interessante. Não é, porém, a nota 8,7 que lhe atribuíram no IMDB. Estou alheia ao burburinho impresso e televisivo desde que, para dar conta de minhas obrigações acadêmicas, decidi parar de ler/ver jornais, cinco meses atrás. Mas conheço bem demais a dinâmica de mercado, que alça a literatura popular aos píncaros do sucesso, impondo-lhe qualidades que ela está longe de ter, como se o topo nas listas dos "mais vendidos" lhe impregnasse - como consequência óbvia - de valor artístico. 
Os fãs do livro não estão correndo ao cinema em vão. O que também não significa que o filme seja uma obra-prima, claro. Primeiro porque não é impossível de sacarmos a trama, uma vez que a gente conheça um pouco de cinema. A obra é dividida em duas partes: 
1- Um Nick Dunne (Ben Affleck) frustrado encontra a irmã no bar de ambos, no quinto aniversário de casamento dele. Seu relacionamento vai pior que nunca – quem ganha o presente é a irmã, um daqueles jogos de tabuleiro dos anos 80, lembrança da infância de ambos (e do infantilismo de Nick, talvez, elemento que poderia – mas não é – trabalhado, para o bem da complexidade da narrativa). Voltando para casa, ele descobre o local remexido e a esposa desaparecida. Não parece se incomodar muito, até que a polícia imiscui-se no caso e ele se torna o principal suspeito de sua morte. 2- Acontece que Amy Dunne (Rosamund Pike) não está morta, tampouco foi suprimida à força de sua casa. Ao contrário, a moça forjou seu suposto assassinato até às últimas consequências, apenas para se vingar do marido que a havia humilhado, o qual ela queria ver acusado e morto (pelas leis do Missouri, onde ocorrera o suposto crime, o assassinato é punido com a cadeira elétrica). 
A narrativa cinematográfica não vai mal. Mas, depois de vermos o desenho do entrecho, fica claro que há, aí, muito barulho por nada... Que as muitas explicações visando a um pretenso realismo dessa história mirabolante apenas torna mais aparente as suas fissuras e, então, a sua tolice fundante. O seu modelo espiritual – e eu bem possivelmente estou superinterpretando – é Um corpo que cai (Vertigo, 1958). O personagem principal é enredado até às últimas consequências na encenação que a sua contraparte forja. Outro filme recente fez o mesmo, de modo mais tolo, prolixo e tedioso ainda: O Melhor Lance (La Migliore Offerta, 2013, doutro grande diretor, Giuseppe Tornatore). 
Garota exemplar é uma distração divertida, mas não passa disso. Ben Affleck é alto e bonito de se ver, mas não se pode negar que seu elemento seja mais a direção (ou o roteiro) que a atuação. O branco que ele imprime à sua encenação até que colabora, no início, para dar alguma ambiguidade ao seu personagem. Mas a densidade necessária a ele – sobretudo na terça parte da história, quando a esposa volta e ele deseja permanecer consigo, a despeito de tudo – nunca emerge. Já Rosamund Pike está bem melhor. O desafio do atual cinema-pipoca norte-americano – falo deste que tem pretensões ao Oscar e, portanto, se faz com um pouco mais de cuidado; do restante não vale a pena nos lembrarmos – é vencer os estereótipos: colocar os belos a interpretarem papéis execráveis, sem que para isso precise enfeá-los no exterior. Doris Day-like Rosamund Pike faz extremamente bem a psicopata que esconde seu desvio atrás dos modos de boa-moça e da erudição. 
O roteiro tem furos exasperantes, em sua sanha autoexplicativa. Sem que a atuação de Affleck seja um primor, percebemos logo que a errada da história é Amy: Aquele marido probo é agressivo, vingativo, gastão? Não seria isso fantasia da esposa, que é, saliente-se, uma notória escritora de aventuras adolescentes? O diário em que a jovem desfiava os seus sofrimentos não seria uma obra de ficção, como tudo o que ela escrevera? Insiste-se demasiadamente num mistério que é mais ou menos uma obviedade. 
Já a terça parte do filme, que poderia se apropriar com alguma complexidade desses elementos, é vazia: Oras, afinal, naquele relacionamento o rapaz e a moça estavam sempre a interpretar! Eram dois personagens, como todos os criados por Amy até então! Partícipes na loucura, a montarem fábulas para tocarem a vida a dois! Toda a metafísica que poderia resultar disso se reduz, no filme, a nada. 
Aí está a mais patente diferença entre Garota Exemplar (ou O Melhor Lance) e Um corpo que cai: reduzem-se um e outro, à metafísica da pipoca – facilmente digestiva e que, independente do quanto a comemos, ainda assim nos deixa esfomeados, tão logo saímos da sessão.