domingo, 31 de agosto de 2014

“O Gladiador” (2000): Melodrama pagão

Foi com um misto de curiosidade e temor que revi, dias atrás, esse épico de Ridley Scott. Vi-o pela primeira vez na adolescência, época em que lia com afinco a revista Set e não perdia estreia alguma do cinema comercial. Adorei-o, então – como, aliás, também, a Academia, que o indicou a uma penca de Oscars (dos quais ele amealhou cinco: melhor filme, ator – Russell Crowe havia se tornado o queridinho de Hollywood no ano anterior, depois de seu desempenho notável em O Informante –, figurino, som e efeitos visuais). 
A revisão de um antigo blockbuster pode ser temerária, depois de tanta água passada por debaixo da ponte. Muita suposta obra-prima pode, no distanciamento temporal, revelar-se lixo, como bem lembra meu amigo Chico Lopes. Outras tantas, a pátina da nostalgia se incumbe de amaciar, e aí se atribuem valores insuspeitados a objetos suspeitos. Outras, ainda, aguentam-se sólidas à revisão. Exemplo desse último caso é Gladiador, porque, acho eu, ele submete os paetês visuais a algumas ideias norteadoras interessantes (já que ambíguas). Vamos a ele e a elas. 

Paradoxal crítica ao “Pão e Circo” e imposição da moralidade cristã na Roma antiga 

Em 180 d. C., momento em que se passa a história, o Império Romano espraiava-se do deserto da África até às bordas do norte da Inglaterra, submetendo aos seus domínios ¼ da população do mundo. A história tem início durante a campanha do imperador Marcus Aurelios contra as tribos bárbaras da Germânia. À breve contextualização se segue a etapa final do confronto, verdadeiro genocídio protagonizado pelo forte exército do César, contra um grupo acéfalo de germanos – grupo sanguinário e desdenhoso da preponderância política e bélica do seu opositor; e, daí, ansioso por lutar até a morte. O César, idoso e enfermo, observa descrente o recrudescimento da luta, a recusa dos perdedores a se renderem e a completa destruição daquele grupo. 
Maximus, o líder do exército, compartilha do sentimento de seu governante supremo. É um espanhol primevo (ainda demoraria às fronteiras dos países serem demarcadas como as conhecemos). Deseja voltar à mulher e ao filho pequeno, dos quais se separara havia dois anos, duzentos e tantos dias. Ele contava os instantes para revê-los – é curioso como o filme trabalha, em toda a sua extensão, a ambivalência da violência como espetáculo, recusando verbalmente a violência ao mesmo tempo em que avidamente a encena. 
Terminada a derradeira batalha, o César e Maximus se encontram. Mais uma porção de terra conquistada, mais inimigos mortos, quando isso terminaria? Eles falam sobre a “Paz”, escassa desde muito tempo. O general deseja rever os seus. Instado pelo velho, descreve em detalhes seus domínios: as flores no jardim, o pomar, a plantação de milho, os pôneis selvagens. É uma bela cena, em que caem as patentes e os dois homens desnudam suas almas. Por ali, acaba de se desenhar a imagem dos dois: Maximus é o herói (luta por honra e glória, lembra a seus homens que os “Campos Elíseos” os estarão esperando do outro lado da vida – esta visada cristã, travestida de politeísmo, é também uma constante no filme), o marido e o pai amoroso, um homem sem manchas; o César, decrépito e cético quanto aos caminhos de seu governo, deseja entregar o Império Romano ao Senado, transformá-lo aos poucos numa democracia. 

O Imperador convocara Maximus, na verdade, para fazê-lo porta-voz de seus planos junto aos seus senadores. Sabia que Commodus, seu único filho homem – natural herdeiro – não aceitaria sua decisão, já que desde muito ambicionava o posto do pai. A esta altura, o rapaz já chegara, e o público já pudera compará-lo mentalmente com Maximus. 
O filme é, como se vê, um desavergonhado dramalhão (sem que, com isso, eu queira incorrer em juízo de valor negativo): estabelece uma linha divisória clara entre os bons e os maus, cujos caracteres desenham-se desde os nomes que batizam os personagens (Maximus x Commodus), apenas fazendo-se realçar no decurso da ação. Ajuda muito o fato de os dois homens serem interpretados por dois grandes do cinema americano da época, além de Crowe, Joaquim Phoenix. Ambos conseguem excelentemente dar conta de seus papéis, incorporando-os para além da flor da pele. São econômicos nos gestos: Crowe tem uma voz rouca, seca e monotonal. Parece esconder do público um mundo, ao contrário dos heróis convencionais de melodramas. E Phoenix é de uma passionalidade incrível – tortura-se pelo desejo sexual (sempre sublimado) que tem pela irmã e constrói milimetricamente o ódio violento (também de laivos sexuais) que tem pelo pai: destaque para o modo como ele o mata. Como todo bom vilão de melodrama, Phoenix rouba a cena. 
Após a morte do César, Maximus vê abater-se sobre si a debacle que o gênero usualmente concede ao seu tipo. Ele é irrestritamente desgraçado. Depois de tomar o lugar do César, o filho assassino manda prender e matar o herói. O know-how militar de Maximus fá-lo, no entanto, dar cabo de um grupo de soldados contratados para a tarefa. Chega aos seus domínios apenas para descobrir sua mulher e filho mortos, assassinados pelo mesmo César mesquinho que tentara lhe tirar a vida (respeitando as regras do gênero, o novo César também galgará até o último degrau da escala de maldade). E enquanto lastima o passamento dos seus, é preso, transformado em escravo e, em seguida, em Gladiador – supostamente o pior destino possível, já que a morte era reputada certa para indivíduos de tal condição. 
Mas não para Maximus, uma máquina de guerra. Convocado a fazer parte das matanças, desta vez no âmbito do espetáculo, o herói não pode fazer nada senão compactuar. Naquele tempo, as arenas de gladiadores eram um entretenimento já consolidado. Não saberia dizer se havia um repúdio contra o costume, por parte da sociedade letrada de então. Santo Agostinho a execra, por sua violência aglutinante (ele narra que, tendo sido arrastado a um lugar desta sorte por um colega, tornou-se “um da turba”, vibrou, torceu, pediu mais sangue, só deixando de lado o vício quando encontrou Deus...). Parece-me, todavia, que o espetáculo era uma variante de teatro, com a diferença de que se encenava a violência vivendo-a, e não a fingindo, como ocorria no teatro. Mas essa é uma longa e complicada história... Aliás, as arenas de gladiadores eram um entretenimento que representava a guerra em microcosmo: o Império Romano foi bastante belicoso, não estranha que quisesse encenar a guerra fora dos domínios das batalhas reais. 
Enfim, tudo isso para pensar no deslocamento que o filme propõe, ao tratar o tema. Segundo seu enredo, o Senado, com toda a corrupção na qual supostamente está imerso (mas que nunca aparece efetivamente), é um braço limpo do Império, em contrapartida ao novo César, agora autointitulado "Ditador". Pois o Senado repudia os espetáculos de gladiadores, assim como o fizera o velho César, e assim como fazia Maximus (que só lutava para se manter vivo e, enfim, consumar sua promessa ao seu governante: de transformar o Império Romano numa democracia). Assim, por contiguidade, o próprio filme consegue realizar a façanha de pregar o fim da violência, ao mesmo tempo em que majestosamente a encena. Excelente trabalho do diretor Ridley Scott, em conjunto com os roteiristas David Franzoni, John Logan e William Nicholson. 
O interessante na ascensão meteórica de Maximus – que e torna uma espécie de “star” avant la lettre, a ganhar, agora, Roma e o célebre Coliseu – é que, com ela, invertem-se os ponteiros. Os gladiadores, escória daquela sociedade, tornam-se paulatinamente heróis. Uma cena clássica é quando os personagens mudam a “história” de certa batalha que encenam, já que, representando uma horda de opositores do Império, destroçam todos os indivíduos que desempenhavam papéis dos historicamente vitoriosos súditos romanos... 
Chegando a Roma, o acaso fará Maximus naturalmente se encontrar com o seu algoz, o que acentuará as características positivas e negativas de um e de outro, respectivamente. Commodus é obrigado a ouvir do sobrinho – e futuro imperador – que o menino desejava se tornar, não um legionário, mas um gladiador; estorce-se diante dos aplausos da turba ao seu inimigo mortal; e ainda precisa amargar o repúdio da irmã, que o rejeita (já que ela, bondosa, teme a sua megalomania crescente) e que ama o outro. 
Aliás, o par romântico necessário ao gênero é fornecido pela paixão que a filha do imperador nutre por Maximus – correspondida até certa altura da vida de ambos, como suas conversas nos permitem entrever. Ela procura ajudá-lo pelo amor que tem a Roma, mas sobretudo pelo que ela sente pelo homem. A união não pode se consolidar porque, diante da lógica criada pelo filme, a mulher e o filho de Maximus o estavam esperando nos Campos Elíseos. Se sempre o esperariam, certamente não iriam querer, no futuro, dividi-lo com outra mulher... 
Ele precisava morrer, para atingir, nos Campos Elísios, céu tão cristão, o cume da felicidade. Morrerá, no entanto, em “honra e glória” – seu lema desde o início do filme: matando o imperador (cujo infantilismo e loucura crescentes nos são muito bem pintados) dentro da arena, diante da turba a louvá-lo e estando claramente em desvantagem, já que o outro lhe cravara a lança nas costas (é um arrematado pulha, o filme não nos cansa de mostrar), esperando vantagem no combate. 
Ao fim, vemos Maximus recolhido da arena carregado pelos melhores homens do imperador, e recebido, no além-túmulo, pela mulher e filho. Commodus jaz no solo poeirento do Coliseu, onde acabará, estritamente transformado em pó.

domingo, 17 de agosto de 2014

A diva vai à ópera: autorreferência em “A Dama Misteriosa” (1928), com Greta Garbo

Curioso esse The Mysterious Lady, segundo filme de Garbo dirigido por Fred Niblo (o primeiro, The Temptress, de 1926, é uma obra-prima). A história, numa primeira vista d’olhos parece não passar de “veículo” à exibição da atriz, mercadoria valiosa na época – os stars valiam, então, mais que as histórias; estas importando, sobretudo, enquanto meios de veiculação das imagens deles ao redor do globo. O plot: Karl (Conrad Nagel), jovem militar austríaco em ascensão, apaixona-se por uma bela jovem apenas para descobri-la uma espiã russa. 
A descoberta, tardia (ela enreda o rapaz para apoderar-se dos documentos secretos que estavam em posse dele), fá-lo ser degradado e preso, e patrioticamente desejar vingança. É, portanto, uma história de ranço belicoso, a porejar repúdio pelo incompreendido elemento estrangeiro, como tantas já rodadas (e que ainda o seriam) na América vinda da primeira Grande Guerra. 
Não é neste enredo mais epidérmico que encontraremos alento, mas sim na imagem etérea que ele constrói de Garbo, imagem para a qual concorrem, além da fotogenia da atriz (aliada a uma inteligência de expressão oriunda de um talento inato – a jovenzinha de vinte e dois anos exibe, aqui, a eternidade dos deuses, coisa que espantosamente fizera desde sua primeira produção, The Gosta Berling Saga, rodada quando ela tinha dezessete); a excelência dos novos processos de fotografia; e, finalmente, o subtexto, que dá carnadura à trama. 
Em Greta Garbo: a cinematic legacy (nunca é demais recomendá-lo aos admiradores da atriz, de fotografia e da Hollywood dos anos 20 e 30), Mark Vieira informa-nos que a obra beneficiou-se de uma então recente transição técnica da fotografia: a adoção do filme “panchromatic” (em substituição ao “ortho”) e das luzes “Mole”, que suavizavam e iluminavam as imagens. Sublinha-se, assim, o etéreo da persona criada por Garbo. 
Mas, The Mysterious Lady não seria um veículo tão apropriado à atriz não tratasse ele, também tematicamente, de retirá-la do rés do chão onde transitam os reles mortais, elevando-a a um intangível céu estrelado. 
Garbo (tímida e antissocial, segundo aqueles que a conheceram nos seus anos de MGM) nunca foi, em cena, a típica girl norte-americana. Nunca trabalhou em loja de departamento, em casas de família. Nunca privou com garotas de sua idade. Seu rosto parecia talhado às grandes tragédias: às vicissitudes amorosas, à solidão, à fome, ao silêncio. Daí sua Dama das Camélias (1936), suas Annas Kareninas (além da versão de 1935, ela rodou uma silenciosa: Love, de 27), sua Anna Christie (1930). E Queen Christina (1933), Romance (1930) – a rainha e a prima-dona, rainha em microcosmo. Sua única “ingênua” stricto sensu foi, até onde me lembro, a Marianne de The Divine Lady (1928), ironicamente seu único filme perdido, e mesmo nele, a mística que não se encontra no conteúdo revela-se no título. 
Em A Dama Misteriosa, a prima-dona se junta à movie queen. Atrelam-se implicitamente os caracteres da diva de ópera e da diva do cinema. Há autorreferência a rodo nessa obra, além de um humor ferino subjazendo à básica historinha de amor entre a espiã (arrependida) e o soldado. Garbo, com aquela face superlativa que a natureza e a Max Factor lhe deram, desenha a personagem com sutileza desusada – ressaltada pelo poder do filme pancromático –, revelando, na mesma medida, a passionalidade preponderante do papel, e a graça metalinguística que jaz no subtexto da obra. 
Ela é primeiramente tomada num camarote de ópera. Ela observa a prima-dona; o galã a vê. Nós a vemos pela reflexão dos olhos dele: aquele ser sublime, imponente, intangível. Isso o perde – e a nós, míseros iludidos, incapazes de perceber a encenação que se superpõe à essência daquela mulher. Mas disso, da encenação, nós (ele e o espectador) apenas nos daremos conta mais tarde. A graça dessa sequência é que a personagem está a representar tomando o palco como espelho. A prima-dona que se dilacera em cena é Tosca, da ópera homônima (de 1900, de Puccini, libreto de Illica e Giacosa) igualmente autorreferencial.
Parênteses: embirrei com o gênero operístico durante muito tempo (burrice minha, nem preciso dizer) pelo over dos enredos, como se tudo precisasse obrigatoriamente seguir a cartilha realista para que valesse alguma coisa. Mas acontece também que Puccini era, como seus libretistas, contemporâneo da busca do teatro pelo realismo cênico. Vem daí, possivelmente, seu desejo, nesta ópera, de colar a personagem à ação, narrando a história da prima-dona - personagem de natural grandiloquência - que se vê obrigada a se entregar a um rico e influente pulha para ter em troca a liberdade do amado, pego em atos políticos contestáveis. 
Tania (Greta Garbo) observa o encontro entre Tosca e o barão Scarpia, chefe de polícia romano. No palco, a diva, contrita, canta possivelmente a celebérrima Vissi d’arte, vissi d’amore (Vivi de arte, vivi de amor), ária se tornará leitmotiv do filme – escolha sui generis, uma vez que, sublinhemos, estamos falando de um filme rodado ainda durante a voga do cinema silencioso. Há aí uma flagrante tomada de posição da MGM em favor do filme silencioso, em detrimento do falado – The Jazz Singer, da Warner, lançado havia poucos meses, virava a indústria do cinema de ponta cabeça. 
A música, elemento-chave da ópera, se tornará, no filme, imagem. Vissi d’arte reaparece primeiro na casa de Tania, tocada pelas mãos do jovem militar já semienredado pela espiã. Ela a canta: “Vivi de arte, vivi de amor/ Nunca fiz mal a ninguém/(...) Sempre com fé/ Adornei com flores os altares/ Dei joias ao manto de Nossa Senhora”, etc. etc. Impossível que o público da época, tão contemporâneo a esse sucesso de Puccini, não percebesse a referência, ainda que implícita, silenciosa. Possivelmente, mesmo as orquestras das salas de exibição reproduziam musicalmente o tema, nos momentos cabíveis. A versão de The Mysterious Lady recentemente lançada nos EUA (num box imperdível, com Flesh and the Devil e The Temptress) infelizmente não o percebeu – sua trilha original não remete em nenhum momento à ária, ou à Tosca de modo geral. 
O uso que o filme faz da canção é, claro, sardônico. Tania vivia de fazer mal aos outros. Mas a mise-en-scène criada pela mulher ardilosa prepondera. A câmera alia-se a ela, e então veremos um prodígio de fotografia – o cinema silencioso atingia as culminâncias da técnica ironicamente em seus estertores – narrar, paulatinamente, a evolução do caso amoroso: jogos de luzes e sombras sobre o casal, na mansão de Tania, enquanto ele está ao piano e ela canta; delicadeza de fábula à sequência de ambos no campo: as flores, o riacho, a cascata, as árvores, suavemente apreendidos, contribuem na consecução do quadro pitoresco. O que o filme busca é bem isso: o pitoresco da paisagem e as cambiâncias sedutoras do cinza para construir-se explicitamente como ficção. 
Uma vez na Rússia, os dois personagens continuarão a fingir – desta vez, estando Karl já cônscio do verdadeiro papel de Tania. Quando ele penetra no covil dos agentes russos e se vê novamente diante da mulher responsável por sua degradação (a cena do rebaixamento do militar é igualmente notável), decide denunciar-se em público. Ela intervém. No intertítulo, lê-se: “Nós temos um público perigoso, músico./ Devemos desempenhar bem.” 
O reencontro do casal faz emergirem umas necessárias convenções do cinema dos anos 20. Tania percebe que ama o militar, que sempre o amou. Após um último – inesquecível – número de Vissi d’arte, reverberado pela diva muda, o casal roubará, com quiproquós dignos da Tosca (com direito mesmo a um assassinato, cometido pelas mãos da moça), certos documentos que redimirão Karl. E, ironia final com a malograda prima-dona de Puccini: na película, os pombinhos ameaçados viverão felizes para sempre...