sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

O jogo de cena de Eduardo Coutinho

O desaparecimento de Eduardo Coutinho me abalou profundamente. 
Tive um encontro fundamental com sua arte anos atrás, numa disciplina sobre Cinema Documentário cursada no Instituto de Artes, prédio colado ao meu IEL. Disciplina transformadora; autor transformador. Vimos dele trechos de Cabra Marcado para Morrer (1985), de Edifício Master (2002), de Jogo de Cena (2007). Apresentaram-mo como o deus do gênero documental. Eu, que apenas tateava esta vertente de cinema, aprendi então a cultuá-lo. Já era fiel seguidora quando veio a notícia de sua morte. Se eu o pranteei, imagino como não o tenha feito, do outro lado da rua, o professor Elinaldo, que me iniciou na devoção... 
O extenso obituário publicado nos dias subsequentes deu conta com profundidade do gênio de Coutinho. Seria besteira retomá-lo. Quem melhor do que Fernanda Torres, estrela do seu fundamental Jogo de Cena, para se debruçar sobre ele? Mas cinéfilo também tem uma aguçada (e perdoável, espero) veia de hagiógrafo. Aqueles que compartilham desta inclinação vão me compreender... Falo a seguir sobre o jogo de cena de Eduardo Coutinho a partir de meu filme predileto dele, o paradigmático Jogo de Cena. 
 Antes de tudo, uma descrição chã da obra, a começar pelo título: Jogo de cena/ jogo cênico/ jogo dramático: “conjugação dos efeitos obtidos numa peça, como a marcação do elenco, a composição cromática dos figurinos, os cenários, os diálogos, a iluminação etc.”, segundo o Houaiss. O Documentário, gênero que correntemente se supõe a serviço da realidade, anuncia-se desde logo como obra de ficção. A escolha do título se estende para forma e fundo do filme. Em cena, mulheres contam suas vidas ao diretor, num palco de teatro cuja plateia encontra-se às escuras. As entrevistadas são enquadradas, o entrevistador está fora de quadro – Coutinho encena assim o protagonismo que dá aos seus sujeitos, a ocuparem o centro da narrativa (protagonismo falacioso; já que quem as conduz é o diretor bruxo). 
O filme abre com a publicação que teria provocado a reunião entre as mulheres e o diretor: o anúncio de um teste para a participação num documentário. Em cena, de jovenzinhas a senhoras maduras contam passagens marcantes de suas vidas. A verdade pulula diante da câmera, e de repente nos damos conta de que Fernanda Torres oscila entre a narrativa de sua vida e a representação da vida de outrem; de que Andrea Beltrão e Marília Pêra vivem, em cena, estritamente as vidas d’outras entrevistadas. O palco do teatro abre espaço para um potente exercício metalinguístico, mais palpável às atrizes, todavia igualmente tangível às anônimas. A escada em caracol, que leva as entrevistadas dos bastidores ao palco, serve a todas para o descolamento da realidade comezinha em direção à arte. O teor do convite publicado em jornal colabora na criação individual – inconsciente, talvez – das personagens. 
No que toca às atrizes, a reflexão sobre o métier é alçada para primeiro plano. Beltrão debulha-se em lágrimas ao representar a mãe que ainda convivia (sem choro ou comiseração, apaziguadamente) com o filho “desencarnado”. Torres pontua sua representação da fala de outra jovem com assertivas consternadas de: “não posso”, “não consigo”, “que loucura, isso”. Na homenagem que presta na Folha a Eduardo Coutinho, Fernanda lembra o alívio do diretor quando ela o autorizou a tornar pública sua hesitação. Desconcentrada por ele, abandonou-a a personagem da qual ela estava imbuída. Desamparada, a atriz se dá conta de que a mulher possuía um lastro de memória que ela – Fernanda – nunca poderia acessar, daí a impossibilidade de representá-la. Quando o ator desempenha uma personagem de papel, ele o cria a partir de si próprio. Defrontado com um ser real, a realidade é todo o tempo esfregada em sua cara. O Homem atesta o limite do Ator. 
A constatação nascida do susto serve de justificativa ao modus operandi do diretor. Coutinho é notório por se abrir aos seus sujeitos, intervindo pouco no curso das falas. No entanto, o conversório aparentemente ao léu de repente atinge inesperada densidade. Os anônimos que lhe falam ganham massa, relevo, individualidade. Isto fica patente nalgumas das entrevistas de Edifício Master. Exemplar é a da mocinha criada no interior pelos avós, que se muda pro Rio para estudar. O foco do depoimento dela é a pequena Tainá, vizinha traquina cuja voz ela constantemente ouvia. O filme fecha com sua narração do primeiro (casual) encontro entre as duas, no elevador. O fato corriqueiro atinge, no decurso da entrevista, o caráter de fabulação: da fala entrecortada da jovem depreende-se sua solidão e o refrigério proporcionado pela voz da criança (retrato, quiçá, de sua infância despreocupada, já tão longínqua). 
Coutinho utiliza a entrevista como matéria prima para um ato de criação não só de sua arte como dos indivíduos com os quais interage. Fabulação em sentido amplo: narrativa linear de episódios, versão romanceada de fatos, invenção, mentira, jogo. O papel transformador da arte opera-se em potência, diante das câmeras. Se, pelas mãos do diretor, realidade e ficção dão as mãos, é porque ambas são consubstanciais. E então, encaramos a exasperante – quase derradeira – entrevista de Jogo de Cena, em que uma anônima interpreta a pungente história do assassinato do filho, contada previamente por outra. Qual é a personagem real? Haveria tal coisa – ambas não poderiam estar representando a história de uma terceira? Isto importa, realmente? Em última instância, não somos todos atores, representando num grande palco? 
No meu egoísmo, lamento a morte trágica de Eduardo Coutinho porque jamais poderei esperar por outro filme seu. Porque nunca poderei lhe dizer quão incontornável sua obra é no meu crescimento pessoal e intelectual, nem como seus anônimos tão singulares me fizeram descobrir-me a mim mesma, e me (re)inventar.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Cacilda Becker em fita

Cacilda Becker (1921-1969)
Passei toda essa semana com uma tremenda vontade de escrever sobre Cacilda Becker. Mas, o que dizer dela? Meu conhecimento da brilhante e fugidia atriz me faz esbarrar num dos (inúmeros) gaps de minha formação; leva-me a revisitar minhas escolhas acadêmicas. Se tivesse começado o doutorado um ano mais cedo, eu certamente a tornaria meu objeto de estudo. Enquanto escrevo, folheio as páginas do Teatro Cacilda Becker, de Inez Barros de Almeida, caminho pela história ilustrada das Chanchadas e dramalhões, do Domingos Demasi - livros que eu trouxe de uma viagem ao Rio lá pelos idos de 2008, quando ainda perseguia o intento de estudá-la. Despedi-me da ideia antes de qualquer mergulho aprofundado na obra da artista da qual, parecia-me, já se falava tanto. 
com Paulo Autran em Antígona
Virada esta página, procurei um objeto mais “tangível” sobre o que me debruçar, já àquela altura frustrada com a experiência errática de reconstruir montagens teatrais a partir do que era dito delas, no preto e branco da imprensa. Resolvida a pendência psicológica, reencontrei Cacilda em película, no que suponho serem suas duas únicas produções completas que chegaram aos nossos dias: o filme Floradas na Serra (1954) e o teleteatro Inês de Castro (1968). Descobri-a, finalmente.  
em Esperando Godot
As duas obras estão longe de ser o que de mais significativo ela realizou. Cacilda Becker levou à cena Antígona (Sófocles), A Dama das camélias (Dumas Filho), Seis personagens à procura de um autor (Pirandello). Sofreu o derrame que a levaria à morte vestida de Beckett, durante uma sessão de Esperando Godot, coup de théâtre insólito do acaso. Drummond diria: “A morte emendou a gramática./Morreram Cacilda Becker./Não era uma só. Era tantas.” A variedade de sua obra, as “mil Cacildas em Cacilda” das quais fala o poeta, infelizmente nunca teremos a chance de conhecer. Aos infortunados resta o muito que foi dito dela, pelas velhas gerações que a viram em cena (e pelas novas, que lhes reproduzem os julgamentos críticos) e a transformaram num mito de largueza quiçá maior à que ela teria caso não tivesse dado objetivamente corpo às personagens trágicas que encenava, desaparecendo tão cedo... 
Dama das Camélias (Teatro Municipal, 1951)
Não tento aqui, obviamente, diminuí-la. Morta Cacilda, resta-nos sua presença fantasmática: incorruptível, luzidia, tão moderna. O cerne da carreira da atriz aconteceu na ribalta, cujo fascínio constrói-se na raridade do registro, na presença empírica do artista, na singularidade do ato. Sua multiplicação na cena dos anos 40-60 converteu-se, ao público de hoje, em apenas duas obras, nas quais se encontra surpreendente encanto, não obstante Floradas na Serra se trate de um “dramalhão deliquescente” (na definição bem-humorada de Domingos Demasi), e Inês de Castro, de um teleteatro datado. Mas, porque nunca conheceremos Cacilda Becker, este nada é muito. 
As obras flagram as passagens bissextas da atriz pelo cinema e tevê. Floradas na Serra, último filme da paulistana Vera Cruz, é o segundo e último de Cacilda, o único como protagonista (em 1947 ela havia composto o elenco do melodrama da Atlântida A luz dos meus olhos, aparentemente perdido). Já Inês de Castro testemunha sua passagem pela Rede Bandeirantes, para a qual, pelo espaço de um ano, sua companhia realizou duas dezenas de teleteatros – gênero de sucesso, anterior à telenovela. Trechos desses espetáculos estão disponíveis no YouTube. A maioria perdeu-se, seja porque não tenha sido gravada em fita (teleteatros costumavam ser apresentados ao vivo), seja porque as fitas foram reaproveitadas em gravações futuras (o certo é que tenho comigo o registro de Inês de Castro, gravado por um amigo, mas cuja procedência primeira ignoro). 
Floradas na Serra narra a história da jovem tuberculosa que morre de amor, na estância idílica de Campos do Jordão onde ela se internara para se tratar. É drama romântico stricto sensu, daqueles vividos ou cantados desde os tempos de Casimiro de Abreu e Álvares de Azevedo. Não é, portanto, do mote que tiraremos o interesse da história. Certamente tampouco de sua medíocre banda sonora, que não raro nos obriga à leitura labial (as distribuidoras que recuperam a história do cinema brasileiro prestariam um inestimável serviço se legendassem o que lançam). Visualmente, o resultado chega perto da cinematografia estrangeira – ideal de Alberto Cavalcanti quando ele deu o pontapé inicial da Vera Cruz. Porém, é sobretudo por Cacilda Becker que o filme vale. 
Floradas na Serra (fotograma)
É vê-la em cena para que comecemos a dar corpo às palavras de Décio de Almeida Prado, ao descrevê-la nos pequenos palcos paulistanos. A exiguidade dos espaços permitia-lhe baixar a voz ao sussurro e se fazer vista por todos. O público experimentava “com clareza exemplar o desenho psicológico da cena, a linha evolutiva da situação dramática”. Para Décio, Cacilda atinge o cume de uma linha evolutiva de atuação que tem início com Procópio Ferreira. Com ela – e, mais amplamente, com o TBC – floresce um gênero de atuação que busca construir a personagem a partir do cerne, paulatinamente, dotando-lhe de individualidade. Rótulos estanques de “cômico” e “dramático” caem por terra, os tipos tornam-se homens. A contenção, palavra chave dessa vertente interpretativa, encontra no cinema campo propício de florescimento. 
Floradas na Serra (fotograma)
A proximidade da câmera faz as vezes da pequena sala de teatro. Cacilda é Lucília, dama da alta roda cuja vida de excessos é abandonada em detrimento d’outra que se revelará muito mais mortal. No sanatório, a convalescente encontrará Bruno (Jardel Filho, depois galã da teledramaturgia nacional): pobre, frágil, sedutor, apaixonado. Cedo o tomará aos seus cuidados, despencando de cabeça no torvelinho romântico. Sob a atenção da mulher que o ama, Bruno torna-se forte. Os ponteiros se invertem: Lucília, moída de desgostos, verá a saúde degringolar. 
Floradas na Serra (fotograma)
Passem o enredo mesquinho. É precioso vê-la em cena, carregada nos braços de uma heroína romântica que nada deve à Marguerite Gautier de Garbo (1936). No cinema, Cacilda Becker é a nossa Greta Garbo. Esbelta, pálida e angulosa; a esvair-se devagar, junto da personagem que encorpa, depois de atingir as culminâncias da alegria e do desespero. A uma entrega análoga ela submete sua Inês de Castro, não obstante a maior artificialidade deste registro, a meio caminho do teatro e da televisão, num tempo em que este medium ainda engatinhava. Se não tivesse morrido, quanto ela não haveria de ter feito pela tevê e pelo cinema, quanto mais não faria pelo teatro? Aceitemos, todavia, o libreto truncado escrito pelo acaso. Cantemos Cacilda Becker como a temos, a partir da incompletude: pela multiplicidade de personagens que apenas poderemos acessar por essas duas, as quais, embora as anunciem, parcamente a representam.
Inês de Castro (fotogramas)

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Cacilda Becker - acima e além:

- Cacilda Becker na Enciclopédia Itaú Cultural de Teatro: http://goo.gl/ud8I7b
- Carlos Drummond de Andrade. Atriz
- Décio de Almeida Prado. Peças, pessoas, personagens: o teatro brasileiro de Procópio Ferreira a Cacilda Becker. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
- Domingos Demasi. Chanchadas e Dramalhões. Rio de Janeiro: Funarte, 2002.
- Floradas na Serra (1954). Dirigido por Luciano Salce, a partir do romance de Dinah Silveira de Queiroz. Com Cacilda Becker, Jardel Filho, Ilka Soares, Silva Fernanda, Gilda Nery.
- Inês de Castro (1968). Produzida pelo Teatro Cacilda Becker, em conjunto com a Bandeirantes. Diretor assistente: Ody Fraga, texto de Henry de Montherlant. Com Cacilda Becker, Mauro Mendonça, Homero Kossak, Jairo Arco e Flexa, Martha Gheiss.
- Inez Barros de Almeida. Teatro Cacilda Becker. Rio de Janeiro: Inacen, 1987.