segunda-feira, 29 de julho de 2013

Sordidez no horário nobre: a imoralidade em “Amor à Vida” (e os caminhos da telenovela)

Aos que não me conhecem nem conhecem o que eu escrevo, deixo avisado que não sou moralista, nem pudica, nem crente praticante e tampouco tenciono posar de modelo de conduta a quem quer que seja. Isso para dizer que pretendo abraçar a questão lançada acima do ponto de vista da arte, ou seja, da inserção da nova novela das nove na série dramatúrgica contemporânea. 
“Amor à Vida” (escrita por Walcyr Carrasco) surgiu com a missão de reerguer o horário depois do fracasso (de Ibope e de crítica) de sua antecessora. “Salve Jorge” teve de encarar a dura tarefa de suceder “Avenida Brasil” (de João Emanuel Carneiro), na qual coincidiram qualidade e sucesso de público. O fardo já pesado somou-se à crise criativa da escritora Glória Perez, e o resultado final foi um folhetim que será lembrado apenas por seu papel social (peguei-o em seu último mês e meio de projeção, o suficiente para acompanhar os desdobramentos dos casos de tráfico de pessoas que ele ajudou a desvendar). 
Paloma/Paolla Oliveira e Bruno/Malvino Salvador
Sem influência espiritual que lhe pesasse, “Amor à Vida” começou altissonante, prometendo equiparar-se à última criação de Emanuel Carneiro. Fez um primeiro capítulo ágil e tenso, de marcado tom dramático com esparsos escorregões, e apresentou um vilão que se anunciava como a versão masculina de Carminha. Não demorou, todavia, para os problemas começarem a amontar. 
O gênero telenovela, de fruição tão fácil, exige um labor inimaginável para que continue interessante passados sete, oito, nove meses de exibição. “Avenida Brasil” alcançou isso de modo excepcional pelo menos por toda a sua primeira metade, pela sofisticação com que seu autor cuidou não apenas das duas protagonistas, mas também de boa parte do elenco coadjuvante (exemplo cabal foi a personagem de Monalisa/Heloísa Perissé, pela maturidade com que ela tratou sua relação com Tufão/Murilo Benício quando ele, apaixonado pela cozinheira/Nina volta a procurá-la). 
Paula/Klara Castanho
É certo que o público contemporâneo de telenovela é mais heterogêneo que há vinte anos; que mais indivíduos de classes menos favorecidas economicamente possuem aparelhos de TV. Porém, é erro grosseiro supor que gente das classes C, D e E é tola. A variedade do público comporta uma gama que vê TV, que vai dos indivíduos paupérrimos de grande senso crítico, à gente podre de rica que só tem cabeça para dependurar chapéu. O nível de percepção que o escritor de telenovela tem do fato determinará se ele vai produzir coisas da qualidade de “Avenida Brasil” ou de “Amor à Vida”. 
A baixa qualidade dramatúrgica de “Amor à Vida” é tão patente que parece intencional. 
Ela é falha do ponto de vista de construção de intriga, já que insere o núcleo principal dentro de um hospital. A telenovela, narrativa longa em capítulos, obriga à criação de situações complicadas que gerem demanda diária do público. Séries norte-americanas de sucesso tomam como tema o dia-a-dia hospitalar (Dr. House, por exemplo). Porém, nelas o que importa é o caso clínico, e então há atenção à construção ficcional das personagens doentes, mesmo (sobretudo) as representadas por atores desconhecidos. 
César/Antonio Fagundes e Pilar/Susana Vieira
A telenovela nacional requer o desenvolvimento paralelo de vários núcleos dramáticos. Querer que também os personagens-pacientes sejam rebuscados, de modo a criarem-se situações dramáticas consistentes no âmbito hospitalar, já seria pedir demais. 
“Amor à Vida” efetivamente passa longe disso. A ação no núcleo do hospital é gerada por expedientes frágeis e/ou inverossímeis: personagens de outros núcleos são transformados em doentes, de modo a interagirem com o núcleo do hospital; ou então o espaço é transformado no campo de desenvolvimento de peripécias de uma melodramaticidade mexicana, que, se giram a engrenagem da ação, deixam igualmente transparecer a pobreza dramatúrgica do conjunto. 
Uma criança achada na rua é registrada como filha do homem que teve a mulher e o filho mortos no parto, com a ajuda da médica que só cometera a ilegalidade porque amava o viúvo, e que para se defender engancha-se com uma enfermeira rival e acaba por matá-la. A mulher cuja criança fora roubada agora a tem nos braços, a sente sua filha, doa-lhe parte do fígado e descobre, por exame de DNA, ser efetivamente ela a criança perdida. O irmão mau descobre-o igualmente, e tenta matar a criança ao ministrar-lhe o remédio errado no hospital. 
O hospital é campo de desenvolvimento de uma intriga de criança, que produz pérolas do mais velho dramalhão (o “chamado do sangue”, que faz a mãe reconhecer intrinsecamente a filha perdida; a vilania stricto sensu do irmão, travestida de bondade) utilizando-se, ironicamente, das mais novas técnicas da ciência. Nem tão ironicamente assim, aliás: “Avenida Brasil” me parece ter sido acidente de percurso dentro da produção novelística contemporânea, a qual, se serve um público cada vez mais infantilizado, não é menos verdade que coopere para criá-lo (e mantê-lo como tal). 
Félix/Mateus Solano
Lancei ao post um título que ainda nem comecei a desenvolver, provavelmente porque os problemas formais de “Amor à Vida” sejam mais urgentes que aquele concernente às pautas lançadas por ela. A telenovela nacional historicamente dialoga com a sociedade que a vê. As boas o fazem com tanta destreza que, mesmo respondendo a questões imediatas, tornam-se eternas. 
Mesmo fazendo face à questões emergentes, como o direito de casais homossexuais à criação de uma família, “Amor à Vida” está menos próxima de nós que São Paulo de Tóquio. Seu microcosmo continua a ser composto dos brancos pertencentes às classes média/alta de uma São Paulo com dicção carioca. 
Com a diferença fundamental de que, em “Amor à Vida”, um quinhão de imoralidade foi espalhado democraticamente por todas as personagens da trama. Do dono do hospital, falso moralista que grita contra o aborto e coleciona amantes, ao homem “certinho” que encontra uma criança na rua e a registra como sua para substituir aquela que acabou de perder, à ex-dançarina que deseja vender a filha a um milionário, à popular “bicha má”, bicho-papão cuja visibilíssima falsidade ninguém consegue enxergar... 
Márcia/Elizabeth Savalla e
Waldirene/Tatá Werneck
“Amor à Vida” apresenta um concerto de atos desonestos de comprimentos e profundidades variados, nas chaves cômicas e dramáticas, todos a satisfazerem instintos meramente egoístas. E de forma tão visível que um incauto poderia considerar esse “amor à própria vida” uma paródia de telenovela, e não uma obra que busca dar continuidade linear ao gênero. 
Que não se fazem mais novelas como antigamente, está claro. Que elas parecem piores – ao menos para esta que vos fala –, idem. O sucesso de público de “Amor à Vida” obriga-nos, todavia, a abrir questões mais que a fechá-las. Talvez comecemos a respondê-las ao compreender porque trambiques, grosserias e afins de gente pouco profunda e não raro totalmente desinteressante interessa tanto o espectador atual.

terça-feira, 9 de julho de 2013

“O Grande Gatsby” by Mr. Luhrmann (2013)

Vou ser nota dissonante no coro que execrou o último trabalho do criador de Moulin Rouge! (2001). Embora esteja longe de ser uma obra prima, este Grande Gatsby é um filme digno de interesse. 
É verdade igualmente que ele se joga de cabeça no kitsch, pagando um tributo deveras custoso à tecnologia na qual é rodado – o 3D potencializa o efeito de excesso dos festins oferecidos diariamente pelo protagonista. 
Tributo “custoso” em várias acepções. As cifras gastas para a produção da obra foram reverberadas com grandiloquência por Hollywood: como se preço fosse sinônimo de qualidade – exclamou irado o colunista da Folha na resenha da produção. Mas custoso também porque o resultado final não é lá muito agradável de se ver. 
O irônico é que tal resultado imprime um sopro de novidade às adaptações cinematográficas da obra-prima de Scott Fitzgerald. A mais conhecida é a de Jack Clayton, de 1974 (o artigo sobre ela é um dos mais visitados do blog desde que a nova adaptação entrou em circuito). Nela, Gatsby e Daisy são impregnados numa pátina de nobreza explicitada cabalmente por Marcelo Coelho em artigo publicado na Folha Ilustrada de quarta passada (Gatsby, o retorno, 3 jul. 2013). São indivíduos superiores, ele (Robert Redford) em seu amor abnegado pela namorada de juventude, ela (Mia Farrow) na sua obrigação de se alinhar ao status quo
Carey Mulligan
Baz Luhrmann suprime a heráldica de seus personagens. Sua batuta reintroduz Gatsby (Leonardo Di Caprio) em seu lugar de gangster endinheirado que mal esconde a origem caipira. 
Daisy (Carey Mulligan) é a mocinha rica e fútil, namorada de juventude de Gatsby que acaba por se casar dentro da high society, patenteando o repúdio pelo estranho que tem a sua classe. O reencontro com o amor de meninice a balançará, mas ela acabará escolhendo o marido, e, portanto, o status que apenas o berço de ouro poderia oferecer. 
Daisy é desinteressante e moralmente frágil. Embora isso fique claro no filme de 1974, o espectador não consegue deixar de se envolver pelo modo como Mia Farrow conduz a personagem. Uma ou outra assertiva da personagem e a suavidade da atriz transformam Daisy num ser quase etéreo, com uma visada mais crítica à coisificação da mulher da alta sociedade daquele tempo, que não passava de um bibelot
Carey Mulligan consegue repor à personagem essas suas características fundadoras. Não porque ela seja má atriz – e isso já se provou nos seus bons desempenhos em dois grandes filmes dos últimos anos, Drive e Shame. O fato de ser pequenina e algo apagada joga em favor da personagem. O resultado de sua atuação é o epíteto da futilidade: a mulher-adereço, a it girl cabecinha de melão que brinca com as vidas alheias como se brincasse de boneca. Uma fêmea dessa estirpe só poderia, mesmo, fugir acuada para não ter de responder pelo crime que cometeu, nos braços do marido que a traíra e que ela traiu, recusando-se a velar o amante que morrera por ela. 
Quanto a Gatsby, o personagem criado por Di Caprio é muito menos grandioso que aquele de Robert Redford. A cafonice das festanças que oferece, onde tudo é too much, espraia-se para seus excessos cometidos ao se vestir ou ao se preparar para receber Daisy, e para seus maneirismos linguísticos. Luhrmann sublinha a origem pobre do personagem nos “Old boys” repetidos com pseudo-pompa por Di Caprio, e no terno cor-de-rosa que fá-lo vestir. Em seu filme, fica claríssimo o porquê o self-made-man Gatsby era rejeitado pelo círculo social de Daisy. 
Tobey Maguire
No entanto, o maior acerto de Luhrmann é também sua principal fraqueza. A breguice de Gatsby acaba resvalando para o próprio filme, na falta de uma instância superior que orquestre de modo crítico todos esses excessos. O resultado final é que tudo parece demasiado extravagante, e nenhuma personagem acabe por ganhar a simpatia do público. Nem mesmo a prosa de Fitzgerald, usada textualmente por Tobey Maguire enquanto ele narra a história do amigo, consegue elevar a história da vala comum em que ela termina depositada.  
O balanço final é que, embora Luhrmann não seja Jack Clayton – e daí é interessante ver seu filme porque ele rebaixa Gatsby do pedestal ao qual Redford o elevou –, ele está igualmente longe de ser Scott Fitzgerald, cuja arte transformou um tipo simplório num ser único, memorável.