segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Dessay, Legrand e a preparação da “Recette pour un Cake D'Amour” de “Peau d’Âne” (1970)


Vivendo intensamente minhas (re)descobertas francesas. 
Antes de tudo houve Natalie Dessay, a milagrosa Natalie, que conseguiu a proeza de transformar o tolo libreto da verdiana “A Traviata” numa obra-prima. Mas o maravilhoso acaso da descoberta ainda reservava surpresas. A soprano francesa passou o mês circulando a França ao lado de Michel Legrand, a cantar as canções por ele compostas ao longo de mais de 50 anos, para clássicos como “Os guarda-chuvas do amor” (Les parapluies de Cherbourg, 1964), “As donzelas de Rocheford” (Les Demoiselles de Rocheford, 1967), “Pele de Asno” (Peau d’Âne, 1970) e "Yentl" (1982). O necessário encontro com ela trouxe de bandeja a redescoberta de um dos mitos da música popular. Não podia ser melhor. Chuva de pétalas de rosas sobre a fronte de Natalie, a quem o blog se dedicará mais a contento brevemente (tapete vermelho já em fase de instalação)! 
No entanto, o assunto principal da postagem é um dos efeitos colaterais de Mme. Dessay, “Pele de Asno”, ou melhor, a receita do “Cake d’Amour” de “Pele de Asno”, episódio central do filme de Jacques Demy. 
Nada melhor para por fecho no ano que a preparação de um bolo de amor, no qual colocaremos todas as nossas melhores esperanças para o ano vindouro, e... Opa, chuva de clichés à vista; paremos por aqui antes que o leitor feche – com razão – a página, e vamos logo para a receita... Mas não sem antes dizermos umas palavrinhas sobre o filme. 
Michel Legrand e Jacques Demy engendraram, a partir dos anos 60, uma das mais frutíferas parcerias do cinema. Juntos, o músico e o letrista/roteirista/diretor promoveram uma leitura tipicamente francesa do filme musical norte-americano. Vistas de relance, suas películas nada devem às produzidas por Hollywood. O olhar atento revela a originalidade na tessitura das músicas, dos versos e uma maior liberdade na montagem. O resultado é a quebra das convenções que regiam os musicais americanos em direção à leitura bem-humorada das complexas relações humanas; a uma poesia risonha. 
A definição veste bem “Pele de asno”, cujo enredo foi baseado em fábula de Charles Perrault. Catherine Deneuve é a princesa repudiada pelo pai depois da morte da mãe. Uma promessa feita à esposa impede o rei de se casar novamente. Quererá o acaso que a mulher perfeitamente talhada para ele seja a filha, a quem ele pede em casamento anos mais tarde. 
A menina vacila, embora esteja mais que propensa a aceitá-lo como marido. A avó, uma fada, canta-lhe os graves preceitos morais que impedem a união: Mon enfant, on épouse jamais ses parents./Vous aimez votre père, je comprends./ Quelles que soient vos raisons,/ Quels que soient pour lui vos sentiments./Mon enfant, on épouse pas plus sa maman./ On dit que traditionnellement,/ Des questions de culture et de législature/ décidèrent en leur temps, qu'on ne mariait pas/les filles avec leur papa. (“Conseils de la fée de Lilas”). Canta-lhe esse assunto da maior gravidade e de forte sopro trágico no ritmo monotonal da língua francesa, por cima de uma melodia que mais se choca com os versos do que os envolve, promovendo como resultado final uma graciosa surpresa. 
Quando tomado no diálogo com a matriz americana, “Pele de Asno” revela-nos um punhado de outras surpresas. A princesa é obrigada pela avó a partir inesperadamente a um longínquo povoado, disfarçada como a emporcalhada criadinha Pele de Asno – depois saberemos que a avó queria mesmo era casar-se com o rei, que, neste sentido, por uma ironia do destino é obrigado a abrir mão da filha para se unir à sogra!... 
Reduzida ao trabalho braçal, Pelo de Asno divorcia-se das princesas sofredoras e passivas da tradição ao decidir que se casará com um príncipe, nem que precise sair ela mesma em sua busca (“Les insultes”). E depois de enredá-lo, ela, com uma encantadora assertividade, preparará para ele a famigerada “Recette pour um Cake d’Amour”, cujo papel fetichista é sublinhado pela crítica que tratou do filme. Aqui, deixaremos fetiches de lado para metermos a mão na massa literalmente. A partir de agora, o Cake d'Amour", versão "Filmes, filmes, filmes!". Mas primeiro, fiquem com a canção: 

 

Recette pour um Cake d’Amour versão Aline Vessoni e Danielle Crepaldi: 

Como viram no clip, Pele de Asno desdobra-se no seu alter-ego Princesa para preparar o doce. Eu precisava de ajuda, por isso convidei para a empreitada a amiga Aline Vessoni, que todos dizem ser minha irmã-gêmea perdida. Eu, responsável por preparar a receita, faria o papel da princesa. Ela, da mal-ajambrada Pele de Asno... 
Embora tenha reagido agressivamente a princípio (por que será?!...), Aline acabou por encampar a ideia. Aqui vocês a veem entoando a canção em falsete. Abaixo segue a receita/canção.

Préparez votre... préparez votre pâte 
Dans une jatte... dans une jatte plate 
Et sans plus de discours 
Allumez votre... allumez votre four.

Prenez de la... prenez de la farine 
Versez dans la... versez dans la terrine 
Quatre mains bien pesées 
Autour d'un puit creux... autour d'un puit creusé

Choisissez quatre... choisissez quatre œufs frais 
Qu'ils soient du mat'... qu'ils soient du matin frais 
Car à plus de vingt jours 
Un poussin sort tou... un poussin sort toujours. 

Un bol entier... un bol entier de lait 
Bien crémeux s'il... bien crémeux s'il vous plait 
De sucre parsemez 
Et vous amalga... et vous amalgamez. 

Une main de... une main de beurre fin 
Un souffle de... un souffle de levain 
Une larme de miel 
Et un soupçon de... et un soupçon de sel. 

Il est temps à... il est temps à présent 
Tandis que vous... tandis que vous brassez 
De glisser un présent 
Pour votre fian... pour votre fiancé 

Un souhait d'a... un souhait d'amour s'impose 
Tandis que la... que la pâte repose 
Lissez le plat de beurre 
Et laissez cuire une... et laissez cuire une heure 


Préparez votre, préparez votre pâte...: resultados do experimento 

Com todo o respeito, M. Demy e M. Legrand como cozinheiros são ótimos músicos. A mistura de quatro punhados de farinha, quatro ovos e uma cumbuca de leite apenas dá uma massa manipulável com as mãos no mundo fantástico instaurado pelo filme... Un bol entier de lait foi reduzido para cerca de 100 ml. Como a receita pede-o bien crémeux, usei um lait concentré entier non sucré, semelhante ao nosso creme de leite, não fosse por sua coloração amarelada. Mas mesmo a diminuição da quantidade de leite resultou numa massa da consistência de um milkshake... 
Enquanto eu realizava o milagre da multiplicação do trigo dentro da jatte plate, chegou em casa da Aline a Flávia Bragatto (era véspera de Natal, dia perfeito para preparação de um “Cake d’amour”...), chefe de cozinha que os deuses sabiamente colocaram em nosso caminho. Concordamos que quatre mains bien pesées era uma medida deveras vaga de farinha de trigo... À essa altura a receita era seguida apenas de rabo de olho, e Flávia se uniu a mim na missão de fazê-la dar certo. 
Cozinhando bem vestida pela primeira vez na vida...

Aos quatro ovos, ao leite e às 750 gramas de trigo (“quatre mains” de gigante de trigo...), introduzimos quatro colheres de sopa de açúcar e aproximadamente 50 ml de mel. 
Seguimos à risca a quantidade de manteiga da canção, une main de beurre fin, umas boas 100 gramas. Multiplicamos o fermento para fazer o - agora - monstro, crescer; un souffle de levain virou três sachês de fermento biológico, já que cada qual faz crescer 250 gramas de trigo.
Hélas, antes a poesia de Demy que essa descrição prosaica da receita! Bem, atentamos contra a arte, mas... deu certo! Eis o resultado final, depois de a massa ter descansado ½ hora em fogo baixo e assado uma hora em temperatura de 200 graus. 
O bolo/pão acabou por espalhar amor pela casa (...). Como ficou apenas levemente doce, nós o comemos com manteiga, ricota, mostarda, patê de atum, frango e tudo o mais que havia na mesa. 
E na manhã do outro dia, ele ainda gloriosamente foi acompanhado por Nutella e mel, recordando experiências muito doces que começaram no concerto de Dessay e Legrand e acabaram numa perfeita (embora um tanto quanto bagunçada, devo reconhecer...) noite de Natal.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Beasts of the Southern Wild/ Les Bêtes du Sud Sauvage (2012)

A UGC – rede de cinema francesa responsável por uma tentadora carteirinha cujo pagamento de uma taxa mensal fixa dá direito à frequentação ilimitada de suas salas – está fazendo barulho este mês por conta de “Beasts of the Southern Wild” (“Indomável Sonhadora” no Brasil, previsto para sair por aí em fevereiro de 2013), que uma olheira da companhia exibidora descobriu logo no Festival de Sundance e comprou para a comercialização no país. A assertividade da mulher pagou-se. O filme (americano, independente) está rendendo ao jovem e até então desconhecido diretor Benh Zeitlin honrarias como o troféu Cámera D’Or de Cannes, além do AFI Awards, o Sutherland Trophy e da nominação para dezenas de outros prêmios. 
A companhia francesa, apoiando-se em comentários da imprensa especializada e de figuras emblemáticas como Ophra Winfrey e Barack Obama, vende-o como um chef d’oeuvre. Deu-lhe grande destaque em sua revista mensal e repete ad nauseam o seu trailer. Campanha tão agressiva de marketing só pode deixar de pé atrás o espectador acostumado a esse tipo de coisa, e foi bem esse o meu caso. Mas a tal tentadora carteirinha da UGC falou mais alto; urgia conferir até que ponto a propaganda tinha razão. 
Quenzhané Wallis
Pois ela estava certa. O filme é muito mais encantador do que promete o trailer bobinho, pontuado por frases de efeito de cunho metafísico, semelhantes ao aborrecido “Arvore da Vida” (The tree of life, Mallick, 2011). Mais que um encanto, ele é um hino de amor à família, à união, à natureza. Hino cantado de forma matizada, pela voz de uma menininha de seis anos que realiza cabalmente aquilo que Edgar Morin discute em As Estrelas: todo mundo mesmo pode, um dia, ser o personagem de si mesmo defronte da câmera. 
Quenzhané Wallis (Hushpuppy) foi descoberta pelo diretor quando tinha 5 anos, numa comunidade bayou da Louisiana. A personagem, escrita para ela, é de certo modo ela própria: criança a descobrir o mundo, “bicho do homem”, como há cada vez menos nessa idade, nesta época em que tudo se vê obrigado a amadurecer depressa demais. O enamoramento do diretor por essa imagem nostálgica da infância se efetiva, no filme, nos primeiros planos que invariavelmente a mostram; na câmera subjetiva que nos dá a história sempre sob o ponto de vista de Hushpuppy. Em sua comunidade primitiva (sem que com isso eu queira fazer qualquer julgamento depreciativo de valor) que tanta importância dá aos nomes, pois transferem suas características aos indivíduos, Hushpuppy é a menina agridoce aprendendo a duras penas como encontrar seu espaço no universo que, como ela aprenderá a perceber, não lhe pertence.


O assombramento frente ao mundo inóspito nós experimentamos juntos com a garotinha, já que compartilhamos sua visão às coisas. A história ganha ainda mais força cinematográfica porque o mundo em miniatura da menina enlaça-se ao da comunidade à qual ela pertence. Bathtub está em vias de ser inundada devido à construção de uma represa. O poder público tenta, com a burocrática assertividade que lhe é inerente, remover o grupo da região e realocá-lo. Há protestos, violência. Coisas que o telejornal reproduz diariamente e que, por isso mesmo, deixamos de enxergar, adquirem vida nova pelos olhos virgens de Hushpuppy. 
Os protestos ganham a conotação de festins embriagadores, em que a lógica capitalista é quebrada em prol da experimentação mágica do mundo. O pai ébrio, vítima de uma doença que em breve o matará, adquire para a menina os foros de rei, de senhor, de guerreiro, de herói. Ele é o domador daquela natureza viva, a matar com tiros de espingarda a tempestade noturna que os ameaça; o líder a conduzir o grupo à vitória. É o mágico que dá vida à filha ungido pela força da carne de jacaré. Seus gestos, olhados pela garotinha, nos fazem enxergar, como poucas vezes conseguimos, coisas graves do tipo: quanto o deslocamento de um grupo do seu habitat reverte em perda de sua identidade? 
A história traz como pano de fundo a preocupação com a natureza, tema que por ter sido já tão cantarolado pela direita, pela esquerda e pelo centro há tempos que perdeu sua força. Num universo no qual a intervenção de cada ser pode atrapalhar o equilíbrio do todo (como diz a menina na sua resoluta e pequena voz, prenhe daquele mundo fantástico que lhe ensinou o pai, a professora e sua relação profundamente afetiva com a fauna e a flora de Bathtub), que direito tem o homem em destruir todo um habitat? Se há ingenuidade nessa formulação, é uma ingenuidade infantil, plenamente perdoável porque também esconde muitas verdades. A personagem nos ajuda a formular perguntas que há muito deixamos de lado, bichos-homens sedentos de progresso e de tecnologia que somos. 


O paulatino alagamento da “banheira” onde habita a comunidade de Hushpuppy obriga a garotinha ao amadurecimento. Processo difícil esse de se tornar homem. “I’m the man!”, o pai moribundo a faz dizer pouco antes de ela encetar uma jornada em busca da mãe perdida. No caminho, um prostíbulo. Uma mãe enxertada – mesmo assim, exímia preparadora daquela carne de jacaré que deu vida à menina – a ensinará que, na vida adulta, nem tudo é como queremos. 
Um brinde ao diretor Benh Zeitlin, que acumula ainda a função de coautor do roteiro, rapaz que mesmo tendo começado a carreira outro dia já demonstra surpreendente domínio do métier. Brindemos à sua história matizada, que se recusa a dar às costas à alegria, porém tampouco se abre às fórmulas gastas do happy end. Mas brindemos sobretudo à sua descoberta da pequena Quvenzhane, que neste nosso mundo de bebês adultos diz preferir o pé no chão aos sapatos, e os desenhos da Disney à Kylie Minogue. Oxalá o mundo purpurinado de Hollywood não estrague a grande artista que ela (felizmente) ainda não descobriu que é.


*
Duas palavras sobre a pequena atriz, da revista da UGC:

Illimité (déc. 2012), p. 7.

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Seguindo os passos de Sabrina

Pont des Arts

I used to walk everywhere in Paris. Along the Seine, there’s a four-mile walk... that goes from Isle Saint Germain to the Pont d’Austerlitz. It takes you past all the bridges of Paris... twenty-three of them. 

Quem fala não sou eu. É a Sabrina de Julia Ormond (“Sabrina”, 1995), com a qual já me encontrei seguramente pelo menos cem vezes, e que agora reencontro mentalmente sempre que faço uma dessas long walks por aqui. 

Flores num dos marchés do 12e.

Alimentando as gaivotas do Jardin de Luxembourg
Paris é cidade talhada à promenade. Os jardins sempre floridos – mesmo com a agora constante queda da temperatura – convida-nos a ganharmos as ruas, assim como os marchés a céu aberto, presentes em todos os quartiers, os estupendos bulevares haussmanianos, triunfos da engenharia de meados do XIX, e as ruelas que os costuram, repletas de marcas de um passado muito recuado. Restos da cidade primordial e medieval ainda perduram na Île de la Cité, como paredes de igrejinhas e árvores quadricentenárias. Saindo dali pela Pont de l’Archevêché, em direção à rue Monge, lá para as bandas do Quartier Latin, o Boulevard Saint Germain quase que dá as mãos às Arénes de Lutece, centro de diversões da Paris (ainda “Lutécia”) do século I - o monumento da cidade moderna a dois passos do monumento da cidade antiga; isto é Paris.
Quem preferir seguir os passos de Sabrina, como eu fiz domingo passado, pode saltar no metrô Gare d’Austerlitz, em direção ao Sena, e caminhar por ele. Nem é preciso de mapa. Cerca de um quilômetro e meio de graciosas lojinhas de livros e postais antigos, de lindas pontes, de weeping willows debruçados sobre o rio, de músicos de rua e de um rio iluminado separam a Pont d’Austerlitz do fim da Île de la Cité. O marco físico é a Pont Neuf, a primeira da cidade. Se mais alguém além de mim desejar conhecer o quartier de Sabrina, é só seguir mais uns 200 metros até depois da Pont des Arts e dobrar a Rue Bonaparte. A primeira travessa à esquerda é a Rue de Beaux Arts, ruela repleta de antiquários. No n. 13, residência da moça, funciona o hotel onde Borges constantemente se hospedava, e onde morreu Oscar Wilde... 

13 rue de Beaux Arts
Sabrina habita Saint Germain, um dos quartiers mais valorizados de Paris, a 500 metros do Boulevard e uns poucos passos mais da Église de Saint Sulpice e do Jardin de Luxembourg. Pergunto-me como a filha do chofer poderia pagar por isso... 
"Sabrina"
Mas continuemos a segui-la, agora até o seu trabalho. Saindo da Rue de Beaux Arts, novamente em direção ao Sena, cruzamos a Île de la Cité pela Pont Neuf, até o Hôtel de Ville – o mesmo em que ainda acontece a exposição “Paris vu par Hollywood”. Uns poucos passos mais pela rue du Rennard e chegamos ao Centre Pompidou, cuja fonte modernosa serviu de cenário para um dos ensaios da Vogue, revista na qual a moça trabalhava. É lá que ela conhece o fotógrafo que a ensina a enxergar Paris pelos olhos da  câmera, e a ajuda a reconfigurar o seu olhar para o mundo. 
Fonte do Centre Pompidou, hoje

"Sabrina"
Sabrina paulatinamente deixa de ser a jovenzinha acanhada que morava sobre a garagem e sobre as árvores dos Larrabees, sempre apartada dos acontecimentos, para se tornar a mulher plenamente imersa na cidade cosmopolita, agora sua passarela, sua tela, seu tema. No ensaio fotográfico que tem como cenário a Tour Eiffel ela já enverga o hábito da parisiense típica, terninho e sapatos pretos e camisa branca, sobriedade e elegância a toda prova. Sob a chuva fina, também tão constante por aqui, preparará o parisianíssimo set para os amantes temas no ensaio: a névoa, o guarda-chuva e a echarpe vermelha solta ao vento – ponto de sedução em meio à reinante sobriedade ambiente. Sob os céus de Paris, a chofer’s daughter encarna cada vez mais as personagens glamourosas que ajuda a produzir para a Vogue
De volta ao apartamento de Saint Germain, a jovem que aprendera a enquadrar fotograficamente a cidade coloca diante da objetiva o filtro cor-de-rosa de Edith Piaf – que é surpreendentemente o filtro natural de Paris, mesmo de noite, mesmo de madrugada, mesmo sob a névoa desses dias cada vez mais frios. 

Across the street, someone is playing “La Vie en Rose.”. They do it for the tourists... but I’m always surprised at how it moves me. It means seeing life through rose-colored glasses. Only in Paris, where the light is pink... could that song make sense... 

Torre vista da altura da Pont Bir-Hakein
Sabrina escreve para o pai, mas suas palavras são, agora, também um pouco minhas. 
Descobri-me, em Paris, uma exímia escrevinhadora de cartas, uma ouvinte apaixonada de Piaf, uma fã entusiástica das longas promenades – a do domingo passado refez o trajeto do Sena, da Passerelle Simone de Beauvoir, ao lado da Cinemateca, até a Rue des Eaux, um pouco depois da Tour Eiffel, passando por um Jardin de Tuileries em festa, com direito a algodão doce e a roda gigante. 8,5 quilômetros de um rio luminoso e de gente entusiasmada andando de bicicleta, patinetes, patins, a pé. 
Quanto meus passos não se devem à “Sabrina”, que vejo religiosamente desde menina, quando a única viagem que podia fazer por Paris era a proporcionada pelo cinema? A cidade vivida em sonho durante tantos anos continua, para mim, a ser uma cidade mais ou menos sonhada, vista com olhos moldados pelo cinema...


terça-feira, 13 de novembro de 2012

Sobre Ladies e Frankensteins: a gênese do cinema mapeada em “Quando Paris Alucina” (1964) e “Frankenweenie” (2012)


“Paris vu par Hollywood” continua no Le Champo, para meu deleite e meu desespero. Como resistir a Audrey Hepburn? Ainda mais a uma Audrey Hepburn multiplicada em Holly Golightly, Eliza Dollittle, Sabrina?... O filme é “Paris when it sizzles”, comédia hilária e inteligente dirigida por Richard Quine. A porção moderna da Paris cinematográfica fica por conta da mais nova criação de Tim Burton, artista por quem os franceses têm devoção – restos da exposição que a Cinemateca Francesa lhe dedicou no primeiro semestre do ano ainda podem ser encontrados na lojinha do local. Dois filmes aparentemente tão dessemelhantes podem, quando vistos em sequência na grande tela da cidade, fazer emergir suas insuspeitadas analogias...


O viés de análise não pode ser outro que não o da metalinguagem. 
O cinema americano fala sobre si desde antes de se mudar para Hollywood. Pearl White deseja tornar-se atriz (em “The Perils of Pauline”, 1914); lá está a câmera da Pathé americana a registrar a heroína diante das câmeras da ficção, para o filme ficcional apresentado dentro do mundo real criado pela série. Década e meia mais tarde, a personagem de Marion Davies trilha caminho semelhante (em Show People, 1928): na Hollywood já então plenamente “máquina de sonhos”, a personagem da aspirante a atriz contracena com os Chaplin, Pickford, Fairbanks “reais”. Não há limites entre a ficção e a realidade que a capital do cinema não possa transpor vitoriosa, plenamente apta a seduzir o público com as ficções que constrói ao mesmo tempo em que lhes mostra que tudo não passa de ilusão. 

Em 1964, nos últimos suspiros do star system – no “crepúsculo dos deuses”, como tão bem Edgar Morin denomina o período –, Audrey Hepburn e William Holden juntam-se, como dez anos antes o fizeram em “Sabrina”, para provarem dialeticamente que Hollywood ainda continuava a vender os melhores alimentos para o espírito. A velha fórmula de “filme dentro do filme” é levada ao paroxismo nesta obra que coloca em primeiro plano o engendramento do ato de se produzir mercadorias de sucesso para a tela grande. Sem nenhuma vergonha, Hollywood sublinha-se aqui como máquina de fazer não só sonhos, mas também dinheiro. Um filme desse tipo dificilmente sairia dali dez anos antes, quando tudo ainda eram flores. 
William Holden é Richard Benson, o roteirista boa-pinta que, segundo ele próprio, é o perfeito exemplar de sua classe: ao receber 16 semanas de salário para escrever um roteiro, “como qualquer roteirista que se preze” passou as primeiras 15 a esquiar na Suíça, a veranear em Saint Tropez, a jogar em Monte Carlo, etc. Da última, restam-lhe apenas um par de dias para que ele se cure da bebedeira e indolência eternas e entregue o produto pelo qual foi pago. Para isso, emprega Gabrielle/ Audrey Hepburn. 
O artifício do studio system, de transformar a atriz num contínuo leitmotiv a repetir variantes do mesmo tema, é aqui explicitado e ironizado. Holden paga tributo ao seu charmoso David Larraby de “Sabrina”. Audrey é súmula de todas as suas ingênuas inesquecíveis. Ao botar os olhos na bela e vivaz taquígrafa, euforicamente apaixonada por Paris, o roteirista enfronhado na indústria de Hollywood se põe a imaginar entrechos convencionais para seu filme: as cenas de aventura, perseguição, enlace e desenlace amoroso já gastas. 
Entrechos dos quais a jovem rapidamente torna-se a personagem principal. Entrechos perigosamente semelhantes àqueles já rodados pela atriz que, na película, dá vida a Gabrielle. “Quando Paris Alucina” realiza, no nível do chiste, aquilo que a Hollywood clássica – a crepuscular Hollywood clássica – exercera durante todo o tempo em que fora potência: promove o intercâmbio entre persona e personagem no intuito de criar os mitos sem os quais a gente até hoje não pode viver... (Edgar Morin comprova-o no seu ótimo “As Estrelas: mito e sedução no cinema”, que me assombra há dias, como os leitores estão vendo). 


"Frankenweenie" segue caminho semelhante. No entanto, como os tempos são outros, sua ironia mescla-se a uma graciosa nostalgia. Os letreiros dependurados sobre o vale, que anunciam a cidade aos visitantes; a opção pelo branco e negro em detrimento do colorido; a sintaxe do filme de horror dos anos 30-50, que estende seus domínios para o desenho dos personagens, dos cenários, das sequências; os nomes dos personagens. Tudo é tributo à Sétima Arte. 
As referências ao cinema clássico multiplicam-se. Senti por conhecer tão pouco o gênero homenageado. Os amantes dos filmes de horror da época, já tão bem apanhado em Ed Wood (1994) – meu Burton favorito –, vão se divertir em listar as obras relidas pelo diretor. 
O cachorrinho ressuscitado numa experiência tão sinistra quanto tocante pelo menino cientista, Frankenstein de quatro patas, vira herói da cidadezinha de New Holand (New Hollywoodland, ressurreição do mito em plena era digital, que tornou possível um resultado tão esteticamente perfeito?) ao salvá-la de gigantescas criaturas que nada devem aos extraterrestres da “Guerra dos Mundos” (1953) ou ao símio de “King Kong” (1933). Ganha uma noiva, no final. Mas não qualquer noiva. A noiva do Frankenstein canino ostenta o mesmo penteado da sua contraparte no mundo “real”. 



Happy End
 

O “The End” que fecha “Frankenweenie”, formado pelos rabinhos das duas criaturinhas peludas, nos remete ao mundo do cinema clássico – mundo feito de irreal realidade, como mostra Morin. 
Já a Audrey/Gabrielle/Holly/ Eliza/Sabrina e o William Holden/Richard Benson/David Larraby de “Quando Paris Alucina” explicitavam, teórica e praticamente, no fecho do filme, que tipo de história o público da época desejava ver nas telas. Uma que terminasse com final feliz, com a câmera enquadrando os dois rostos lindos e muito bem pagos das duas estrelas de cinema, as quais dariam o tão esperado beijo, responsável por vender a pipoca e fazer os milhões pipocarem... 
“Quando Paris Alucina” é um dos últimos sopros do star system. Junta todo o cabedal do cinema clássico contra um inimigo declarado, a nouvelle vague, “aqueles filmes nos quais nada acontece”, como afirma Gabrielle entre suspiros lamentosos. 
Há Paris, há Audrey e Holden – duas das principais estrelas do cinema americano –, o colorido, os vestidos, o agito das festanças e das perseguições frenéticas, e muitos, muitos acontecimentos a convergirem para a tal cena que vende a pipoca – cena que ratifica o amor eterno entre o par romântico. Nunca Hollywood precisou se explicar tanto antes de fazer seus protagonistas se beijarem no final da película. Nunca antes misturara tão bem acidez e homenagem a um tipo de cinema que nutrira por década o corpo e a alma dos espectadores. “Paris when it sizzles” é, mesmo, prova contumaz de que a capital do cinema enfrentava drásticas mudanças. 
Seria o filme de Tim Burton outro ponto de inflexão na história do cinema americano, como foi o de Quine? O Oscar a “O Artista” patenteia que a ode ao cinema clássico é a nova onda do cinema. Morin de novo: “no instante em que o star system morre, a estrela, que também julgávamos morta, adquire essa sobrevivência que em arte se chama afortunadamente imortalidade. (...) As estrelas de cinema atravessam os anos-luz.” (p. 135) 
Como o principal oscarizado desse ano, tanto o filme de Quine quanto o de Burton constroem o enredo ao redor do ato de fazer filmes. Vi o último com uma amiga, Raquel Vandelli, que sublinhou com argúcia a metáfora mais geral sobre a qual ele se sustenta: o cachorro-Frankenstein é o próprio cinema, feito do recorte e da costura de outras artes. Recorte-cola que se dá no âmbito material, mesmo, podemos acrescentar, já que é a decupagem a responsável por construir esse cinema homenageado, tão amado. Oxalá a recarga de energia que o estimado animalzinho de “Frankenweenie” ganha no desfecho converta-se em força para a própria arte, e que ele e ela sigam firmes e fortes por anos-luz... 


A Lê, competente editora do “Crítica Retrô”, querida como sempre, deu para este blog o selinho abaixo. Sou-lhe muito grata. Vou circulá-lo entre os blogs dos amigos, que ando lendo menos do que gostaria, infelizmente, mas pelos quais tenho grande respeito e carinho. Cada um deve circulá-lo para outros sete blogs. Se quiserem, ok?


Crítica Retrô, da Lê 
Jornalístico, de Maurette Brandt
As Tertúlias, de Ricardo Leitner
O Falcão Maltês, de Antonio Nahud Júnior
Sublime Irrealidade, de José Bruno da Silva
Cinema cem anos-luz, de Marcelo C. M.

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

O teatro no cinema: “Cesar doit mourir” (2012), “Vous n’avez encore rien vu” (2011), "Traviata et nous" (2012)


Três bons filmes em cartaz por aqui atualmente trazem a mesma questão de fundo, a de como o cinema representa o teatro: “Cesar doit mourir” (Cesare deve morire, 2012), dos irmãos Paolo e Vittorio Taviani, vencedor do Urso de Ouro de Berlim; “Vous n’avez encore rien vu”, de Alain Resnais e Bruno Podalydès, nominado à Palma de Ouro, e “Traviata et nous”, de Philippe Béziat. Cada um se debruça sobre um gênero distinto – a tragédia, o drama e a ópera – e sobre o passado, fazendo-o reverberar novamente no palco, a arte da presença, e enfim na tela do cinema, lugar em que o passado é embalsamado, como diz André Bazin... 
Digna de nota é não apenas a escolha do assunto, mas o mise-en-scène dessas produções. 

Cesar...” toma a tragédia de William Shakespeare “Júlio César”, recriando a Roma do bardo inglês no seio de Rebbibia, prisão de segurança máxima romana. Internos transformam-se nos reis, tiranos, escravos e homens livres. Transformam-se neles e os transformam. No contexto de tolhimento da liberdade em que se encontram, quanto mais se aproximam de seus personagens, mais eles conseguem dar voz aos seus temores e anseios. A obra de Shakespeare é, então, impregnada dos dissabores individuais daqueles homens, alguns dos quais jamais transporão os muros da detenção. 
A recíproca também é verdadeira. Eles conhecem bem os coups de théâtre, as reviravoltas repentinas que determinam o futuro dos homens. Por isso parecem tão bem talhados a encenar o percurso do rei que se torna tirano, acabando, enfim, assassinado pelo seu círculo mais próximo. A prisão transforma-se em laboratório e divã. E a arte exerce, enfim, todo o seu potencial disruptor: dá asas ao grupo, que descobre sua força ao transcriar a tragédia shakespeariana, e tolhe-a, ao encerrar a Roma eterna do dramaturgo inglês em torno das grades de Rebbibia. Cosimo Rega, um dos internos do complexo, o Cassio da obra, sintetiza bem isso ao constatar que as grades apenas se tornaram para ele uma prisão depois que ele descobriu a arte. 

Vous n’avez encore rien vu” toma como objeto o drama “Eurydice”, de Jean Anouilh, encenado pela primeira vez no Théâtre de l’Atelier em 1941. Drama que, por sua vez, recria a fábula de Orfeu e Eurídice. Neste caso a protagonista é atriz de uma companhia mambembe que se apaixona perdida e reciprocamente pelo jovem músico que encontra na estação de trem. O realismo fantástico conduz a ação. Depois de morta a jovem, o rapaz conhece seus antigos relacionamentos. Louco de amor e ciúmes, ele aceita a ajuda de um deles para tornar a encontrá-la, apenas para perdê-la novamente, já que não respeita as exigências do homem e a olha. 
Diferente de “Cesar...”, o drama aqui dá os braços a um fio de enredo: dois elencos antigos de “Eurydice” encontram-se depois da morte de seu autor – personagem fictício – por uma disposição testamentária dele. Juntos devem assistir a uma recente encenação do drama e opinar sobre ela: encenação simbólica, bem ao gosto contemporâneo. Sentados na sala escura do cinema tornado teatro, os artistas que outrora deram vida à peça são pouco a pouco impregnados pelos personagens, até que novamente tornam-se eles, encetando uma relação dialética com o teatro-filme apresentado no écran
Cenas fundamentais da obra são recriadas, várias delas experimentadas por cada um dos dois pares românticos que até então ocupavam passivamente a plateia. Aqui o que importa não é o sentido completo da criação, mas a poesia das palavras e dos gestos. No fim temos um encorpado exercício de desdobramento. Não mais uma, mas três Eurydices e três Orpheus se alternam para demonstrar a inexistência de sentidos fechados, unívocos, para a obra artística. “Eurydice” pode sempre renascer. Ainda mais no centro do palco, onde tudo é sempre novo. Uma homenagem ao teatro que se rende até mesmo a um explícito coup de théâtre, que não conto para não estragar a surpresa do espectador... 
Para o público brasileiro o filme apresenta dois atrativos especiais: Lambert Wilson, do ótimo “Homens e Deuses” (Des hommes et des dieux, 2010) como um dos Orfeus e Michel Piccoli do igualmente ótimo “Habemus Papam” (2011) como os dois pais. Eles desempenham-se num só tempo a si próprios e aos papéis de “Eurydice”. Teriam eles efetivamente composto os elencos de duas montagens distintas da peça? Não consegui responder a questão. Gostei no entanto, do entremear da ficção na realidade. 

Traviata et nous” percorre os bastidores da montagem da célebre ópera de Verdi para um festival ocorrido em Aix-en-Provence na primavera de 2011 (mise-en-scène de Jean François Sivadier, maestro Louis Langrée). Uma espécie de making of, diríamos à primeira vista – já que a encenação da própria ópera já está disponível para a venda –, não fosse o esforço que faz o documentário em negar a obra teatral para se concentrar na maquinaria que a engendra. 
Ideia luminosa, pois por mais eficiente que parece ter sido esta montagem, a ópera de Verdi continua a ser a boa e velha “La Traviata” cujas árias caíram nas graças do público há mais de 100 anos, espalhadas por meio do palco, de partituras, do cinema e do teatro – lembrem-se, no que toca ao cinema, da Júlia Roberts de “Uma linda mulher” (Pretty Woman, 1990) banhada em lágrimas ao som de “Amami Alfredi” ou do ébrio de Ray Milland acompanhando sedento os copos em “Farrapo Humano” (The lost weekend, 1945) enquanto o tenor entoa “Libiamo ne’ lieti calici” (como a-do-ro o humor negro de Billy Wilder...). 
Ao jogar luzes para o processo de criação desta montagem de “La Traviata”, Philippe Béziat repõe o interesse intelectual por essa ópera já tão conhecida. 
“La Traviata” é obra de grande espetáculo adaptada por Verdi de um grande sucesso literário e teatral de meados do século XIX – “A Dama das Camélias”, de Dumas. É de uma época de teatros ruidosos, claros, aos quais importavam especialmente o aparato cênico e a voz; daí o transbordamento geral dos gestos e das notas. 
Béziat opta por dar destaque ao detalhe. Portanto sublinha o trabalho de Sivadier no sentido de reduzir os cenários, multiplicar os símbolos e ajudar Natalie Dessay a criar uma Violeta cujo rosto expressa tanto quanto a voz. O filme evidencia bem o esforço do encenador, ao recortar a atriz em primeiros planos quando ela está mais plenamente mergulhada na personagem. Um mover de olhos, as mãos que acariciam o amado corpo imaginado, nascido de um arranjo de flores esquecido no proscênio. Fundamental na ópera, a voz torna-se aqui só mais um elemento da criação. O filme investe na elucidação do mise-en-scène que tornou possível o resultado final. 
Mas o resultado final a gente não vê. Esse e os outros dois filmes partem do teatro para torná-lo cinema, por isso eles me são tão interessantes nesse momento. Um truc fundamental nesse sentido é a inserção, em “Traviata et nous”, de uma sequência em que se sucedem fragmentos da morte de Violeta, tomados durante os ensaios. Serviriam eles como metáfora do cinema, que prima pela reprodução, ao contrário do teatro, ao qual importa o gesto final, perfeito? Ainda não sei. Mas o fato de a produção cinematográfica de hoje estar insistindo em questões como essas me entusiasma a pensar um pouco mais sobre elas.

Violeta aprende a fazer Alfredo presente
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A parte da resenha referente a "Traviata et nous" foi ligeiramente reformulada em 15/11. Demorei uns dias para me dar conta de que o diretor do documentário e o responsável pela mise-en-scène da ópera não eram as mesmas pessoas, e outros tantos dias para ter tempo de consertar meu equívoco...

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Amostras do festival de Cannes 2012: “Like someone in love” e “Paperboy”


Cannes está chegando aos poucos por aqui. Nesta quarta estreou “The Paperboy”, de Lee Daniels, com um Zac Efron finalmente crescido e bastante bem e um Matthew McConaughey e uma Nicole Kidman muito bons e quase que irreconhecíveis: ele porque foi vestido com bastante esmero para o papel do jornalista investigativo que viaja ao sul dos Estados Unidos nos anos de 1960 colhendo evidências no intuito de inocentar o caçador de jacarés (John Cusack) implicado na morte de um xerife racista: está cabeludo, sujo, pouco aprumado e, portanto, bastante eficiente; e ela, porque insiste nas aplicações de botox, que deixa inexpressivo o contorno de seus lábios. 
O botox, no entanto, parece ter vindo a calhar neste caso. Nicole é a sulista que deseja esconder seus 40 anos atrás da maquiagem exagerada e do vestuário provocante. Torna-se um arremedo de mulher jovem, o que convém à história. 
“Frescor de mocidade” sua personagem efetivamente tem pouco: é mulher esquiva com tara por presidiários. Seu caso com o caçador de jacarés, tocado por correspondência, aproxima-a do jornalista (homossexual), de seu amante negro e do irmão imberbe. Os dois últimos passam a viver com ela um triângulo amoroso pintado com hiper-realismo e alguma inverossimilhança. 
Vê-se que sobram histórias em “The Paperboy”. Tal e qual as colunas de um jornal, temas diversos povoam-no. Funciona na economia do jornal, mas não na do filme, onde tudo parece episódico: denúncias de preconceitos vários (a patroa branca que humilha a empregada negra; os homossexuais, perseguidos pelo sexo e pela cor); a investigação do assassinato; a descoberta do “Amor” pelo rapaz; a ética jornalística. Para botar ordem na bagunça entra a empregada negra, contadora da história tempos depois e voz-off do filme. Ela o ordena, mas mesmo assim alguma poeira vai vez por outra fazer barriga debaixo de algum tapete. Isso gera alguns momentos de lassidão imperdoáveis. Só os desculpamos quando, em cena, Nicole Kidman dá voz à estranha fêmea sulista. Mesmo a mal explicada estranheza dela não impede que constatemos o belo trabalho de corpo e voz que ela faz para dar vida ao seu papel. 

Rin Tanakashi
Abbas Kiarostami estava inspirado ao batizar seu “Like someone in love”. Oxalá a inspiração continuasse consigo durante a rodagem do longa... Dois anos atrás, Cannes botou merecidamente em destaque seu “Cópia Fiel” (2010), denso exercício filosófico que deu a Juliette Binoche o prêmio de melhor atriz. Não acompanhei a crítica da Cannes desse ano a este último. Aqui em Paris a imprensa não gostou dele. Moi non plus... 
Ryo Kase
É rodado em japonês e se passa ruas de Tókio e adjacências. Há nele ecos de temáticas já reverberadas em “Cópia Fiel”, como aquela que se refere à relação entre o original e a cópia. Ecos esvaziados, no entanto. Na megalópole, a avó do interior reconhece a neta na fotografia de uma prostituta. Trata-se efetivamente da menina, que nega o fato para a velha, para o namorado, para si mesma – afinal, o retrato pode muito bem ser de outra pessoa, ela mesmo julga-se parecida com todo mundo. Eu tenho para mim que isso é laivo de uma visão eurocêntrica do oriental – o modo como os ocidentais observam o Oriente, o assemelhamento que atribuem a todos os seus habitantes, não se sustenta de fato. Um japonês é mais capaz de distinguir dentre os seus do que nós de distingui-los, em suma. Enfim, do modo como foi posto, o tema não me convenceu. 
Tadashi Okuno é o velho acadêmico romântico
Mas o problema não está só aí. Do ponto de vista cinematográfico “Like someone in love” não é mais inspirador. Temos uma câmera irritantemente inexpressiva a apreender tudo o que passa pela objetiva. Exceto por umas cenas de maior concentração, em que gestos/ música/ enquadramentos cooperam para a construção de sentidos mais densos (a canção-título na voz de Ella Fitzgerald despindo a alma do velho professor quando ele recebe a prostituta pela primeira vez), tudo caminha ao léu. O desfecho, um típico Kiarostami, aberto, só faz coroar a fragilidade dos sentidos construídos. Era assim também em “Cópia Fiel” – mas não se enganem, porque este trazia de fundo uma questão teórica debatida com muito mais contundência ao longo da história.