sábado, 9 de abril de 2011

Vale Tudo: do tempo em que telenovela ainda era coisa séria

A Rede Globo assumiu empreitada de risco meses atrás, quando começou a veicular pelo Viva a telenovela “Vale Tudo” (escrita por Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères e dirigida por Dênis Carvalho e Ricardo Waddington), que mobilizou o país quando foi exibida em rede nacional entre 1988 e 1989. Mesmo que a empreitada tenha sido levada a cabo num canal por assinatura, o burburinho que a novela começou a gerar desde sua estreia (em outubro do ano passado) sem dúvida obrigou a emissora a repensar o seu modo de fazer teledramaturgia.
O porquê disso compreende-se logo que se examine um capítulo – qualquer um – da trama. Ao fazê-lo, é impossível não se ser inundado pela torrente de realidade que brota da tela. E tal realidade brota com tanta maestria que se torna palpável até mesmo para aqueles que a conheceram só de nome. “Vale Tudo” fotografa em cores vivas o Brasil recém-saído da Ditadura, que enfrentava uma inflação aviltante, desvalorização da moeda corrente e, portanto, altos índices de pobreza.
O momento político torna possível a crítica direta, e aí não é mais preciso criar – como em Roque Santeiro – uma metáfora de cidade corrompida para se referir ao Brasil. Assim, o país mostra na tela a sua cara: toda ela, no que há em si de mais hediondo e de mais humano; de mais trágico e de mais engraçado. Como bem lembra Sílvio de Abreu em entrevista dada recentemente à revista Filme-Cultura, aquela era uma “época muito divertida dramaturgicamente”. A conturbada situação permitiu que se introduzisse nesta telenovela um elemento caro à arte desde muito tempo: a crítica social. Ainda mais se considerando o lugar peculiar que cabe ao seu gênero – obra aberta, que pelo seu imediatismo pode dialogar diretamente com o momento histórico no qual é criada, participando em sua modificação.
Os espectadores do século XXI não deixarão de tomar um choque de realidade ao serem confrontados, logo no primeiro capítulo da trama, com a datilógrafa que afana rolos de papel higiênico e sabonetes do banheiro da empresa onde trabalha para que, assim, possa ter esses produtos de primeira necessidade até o fim do mês. Antes do esgoto-Brasil de “Deus nos Acuda” (1992-3) tragar os ricaços, a merda em que viviam os brasileiros era ironicamente pintada em “Vale Tudo” pela ação da jovem que não tinha nem mesmo condição de comprar produtos para fazer sua higiene íntima. E isso enquanto, noutro canto do Brasil, a humilde agente de turismo deixava a casa que a filha lhe roubara, vendo ter sido vã a tentativa de ensinar à menina que, em tempos de crise, a honestidade ainda era o melhor caminho.
“Vale Tudo” está a anos-luz dos idílios-românticos-em-terras-estrangeiras que usualmente aparecem nas novelas das 8, os quais, de tanto que foram repetidos, já perderam todo o charme. Ao invés das gastas exóticas paisagens japonesas ou lugares turísticos notórios, tomados como cenário de não menos gastas histórias de amor fadadas à desgraça até que no último capítulo todos vivam felizes para sempre, “Vale Tudo” abre no escuro de um quarto e no final de um relacionamento onde sobram recriminações e tapas. A cena é dura como a realidade, porém, é escrita e encenada com tanto primor – o que, aliás, é uma constante na novela – que se torna bela.
O paradoxal é que essa maestria foi em parte fruto da necessidade, já que a Globo daquele tempo estava distante do domínio técnico que tem hoje. Daí os planos de conjunto e/ou stills da gente humilde carioca repetidos ad nauseam ao longo dos capítulos; daí as imagens escuras; as vacilações do elenco impressas em película; os constantes primeiros planos, que optam por flagrar os dramas internos das personagens em detrimento da cidade majestosa (mas repletas de contrastes tantas vezes deixados de lado pelas telenovelas atuais) na qual a história se passa.
Até mesmo a dificuldade prática da Globo de mandar para fora do país seu elenco converteu-se em um ganho dramático, já que os países estrangeiros considerados então símbolos da civilização (os Estados Unidos, a França, a Itália) não passam de miragens para o público, o que mimetiza a distância que separava o Brasil das potências do Norte – distância marcada não só em léguas mas nos cruzados que diariamente se desvalorizavam, afastando-se do dólar. A contingência cooperou para que esta telenovela construísse admiravelmente bem os personagens aproveitando-se de algo que tinha de sobra, que era o talento de gigantes do gênero: além dos já mencionado escritores e diretores, atrizes e atores como Regina Duarte, Antônio Fagundes, Glória Pires, Beatriz Segall, Lídia Brondi, Renata Sorrah, Lília Cabral, Natália Timberg – para ficar apenas neles e não me estender ao restante do sempre correto elenco.
“Vale Tudo” é um microcosmo da sociedade que bota em cena. Supera a divisão estanque da comédia de costumes quando decide não se restringir aos tipos, criando caracteres bem delineados, complexos como os homens, o que só faz aumentar seu potencial de crítica inteligente. Daniel Filho, que estapeia a personagem de Regina Duarte na cena que abre a produção, é também o pianista sonhador seduzido pela miragem do Primeiro Mundo. Numa de suas mais belas intervenções, descreve em detalhes ao amigo rico uma Nova Iorque que ele apenas conhecia na imaginação. Quando está em cena, enche a tela com sua presença agridoce, pontuada pelas canções de uma Broadway que ele nunca viria a conhecer pessoalmente e por sua tentativa de ganhar a vida com sua arte – algo praticamente impossível naquele momento.
Renata Sorrah dá corpo de forma admirável a uma frágil alcoólatra que constantemente luta para domar seus demônios interiores. Alguns o público conhece: a personalidade assertiva da mãe, que a esmaga; o medo de perder o esposo; o temor de que sua arte seja rejeitada. Outros, não, já que sua ultrassensibilidade é também um traço característico de sua personalidade. Traço que, aliás, é bastante bem definido pelo mordomo-cinéfilo Eugênio, que encontra analogia cinematográfica para todos. Se a ambiciosa Maria de Fátima é comparada à alpinista social levada à cena por Katharine Hepburn em “Alice Adams” (1935), Heleninha nos é primeiramente apresentada como a Judy Garland de 1952. Aproximação mais que perspicaz, não só por tomar o estado físico da atriz que retornava à ativa depois de um recolhimento numa clínica de recuperação, como para estabelecer uma aproximação entre ambos os estados psicológicos. A analogia coopera para a construção de uma personagem matizada. Seu vício não a torna unicamente digna de nossa piedade, já que sua sensibilidade lhe permite desempenhar algumas das cenas mais comoventes da novela: não há melhor exemplo do que aquela em que ela é indiretamente responsável por fazer com que Celina libere Raquel da promessa que fez de se afastar de Ivan, ao afirmar à tia que as pessoas mudam, cometem erros, portanto, não merecem ser julgadas.
Esses exemplos apontam o magistral tratamento dado ao texto da telenovela, cuja graça, poesia ou acidez estão a serviço de idéias que tinham uma flagrante relevância naquele final de anos 80. Aí está uma das diferenças mais perceptíveis entre ela e o grosso da teledramaturgia de hoje. A situação capenga do Brasil sobressai-se em “Vale Tudo”, servindo como dínamo das ações de boa parte das personagens. A situação dramática do país coopera para a construção de episódios intensos e verossímeis. Conhecendo o contexto da época –recriado tão bem – não é difícil nos flagrarmos dando razão à filha desnaturada quando ela afirma que ninguém poderia progredir naquela situação valendo-se da honestidade. Também não é difícil nos surpreendermos sendo coniventes com o mocinho quando ele decide recomeçar a vida no estrangeiro com os 800 mil dólares roubados que por acaso caíram em suas mãos.
A situação do país era grave e a essa telenovela não se contenta com soluções simplistas. Por isso, suas personagens são desdobradas em suas facetas positivas e negativas. Só quem escapa ao matiz é a lendária Odete Roittman (criada com perfeição por Beatris Segall), intrinsecamente má, de uma maldade obscena, ridícula – e, portanto, risível. “Vale Tudo” estabelece um sofisticado diálogo com a Sétima Arte, que não só dá as caras na trama em menções literais como inspira seus caracteres. Se Raquel é uma sensacional versão tupiniquim da cozinheira Mildred Pierce, (da película homônima de 1945) – mulher que mesmo depois de rica não consegue escapar ao preconceito da filha –; a personagem de Odete remete ao farsesco Hitler criado por Chaplin no “Grande Ditador” – basta lembrarmo-nos das constantes rajadas de frases num francês impecável que ela profere, fazendo-se tão incompreensível quanto o líder nazista satirizado pelo artista inglês. Ridícula mas, não obstante, perigosa, como são todos os megalomaníacos.
Ao tratar de modo tão complexo os homens e as relações que estabelecem entre si, “Vale Tudo” demonstra extremo respeito pelo espectador. A novela é miniatura da cidade onde se esbarram ricos e pobres, cultos e incultos e um turbilhão de pessoas de interesses dessemelhantes – e então, tem coragem de fazer esses vários discursos emergirem ao longo da narrativa. Quanta distância entre ela e os produtos pasteurizados da nossa teledramaturgia atual, repletas de vilães caricatos e de mocinhas casadoiras choramingas que nos dão, a cada estreia, a desagradável sensação de já termos “visto este filme antes”. Ao contrário das produções de hoje, “Vale Tudo” pressupõe um espectador adulto, aberto à reflexão. Sua reexibição, 22 anos após sua estréia, está deslocando o espectador de sua zona de conforto.
E, se não bastasse a assombrosa qualidade do roteiro, somos ainda presenteados com um dos elencos mais afinados de todos os tempos, o que só faz potencializar a qualidade do texto. Eu podia começar por qualquer um para comprovar a veracidade do que aponto, mas é minha obrigação moral concentrar-me em Regina Duarte. Verdadeira operária, Regina é sem dúvida quem mais aparece em cena, sempre excelente, inspiradora e digna de atenção. Quem a vê como a trabalhadora honestíssima Raquel esquece-se por um momento que ela já havia sido a passional Porcina (minha musa). Mais surpreendente é o quão rápido ela consegue nos convencer, na segunda fase da telenovela, que se tornara mulher rica – pintando uma elegância modulada pela simplicidade do que fora no passado. Com a cooperação de seu galã, compõe ainda umas cenas românticas inesquecíveis, nas quais consegue criar uma atmosfera de sensualidade que eu nunca vi semelhante na TV. Um exemplo patente é a cena em que ambos, depois do assentimento de Celina, voltam a deitar-se juntos pela primeira vez: uma cena quase teatral, quase posada, lindíssima, bastante eficiente por sugerir ao invés de desenrolar todo o ato aos olhos do público. É óbvio que tanto talento não ganhe espaço na teledramaturgia atual. Aqui, vale a frase de Norma Desmond, de "Sunset Boulevard": Regina, você é uma grande atriz. A televisão é que ficou pequena.
Mas, a contar pelos últimos acontecimentos, parece que nem tudo está perdido. O burburinho que “Vale Tudo” fomentou chamou a atenção para um grupo de excelentes artistas que a tempos não davam o ar da graça na TV. Nathália Timberg ganhou um espaço na novela das 8, Regina Duarte estreará em breve na macrossérie “O Astro”, Beatris Segall participou do (divertido) especial de Susana Vieira. Hoje mesmo, na Folha “Ilustrada”, Lauro César Muniz afirma que a teledramaturgia precisa ser modificada para não perecer. Assuntos palpitantes dos quais ela pode se apropriar é o que não falta. O problema é que agora a situação periga inverter-se. Acostumado à “produção em série”, é possível que o público rechace produções que se descolem dos lugares-comuns. A mesma Folha que publica a entrevista de Muniz constata que, quando “Roque Santeiro foi reprisada no Vale à Pena Ver de Novo (2000), chegou a perder em audiência para o Chaves. Esperemos para ver, sempre na torcida para que vença a qualidade.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Clube de Blogs de Cinema Clássico


Olá, amigos.

Acabei de me associar ao "Clube de Blogs de Cinema Clássicos", idealizado pela cinéfila Carla Marinho para congregar blogueiros que têm em comum o interesse pelo cinema clássico. Carla me enviou o e-mail abaixo, que transcrevo porque ele explica em detalhes sua ideia:

Verifico feliz que estão sendo criados blogs muito bons com conteúdos abordando o Cinema Clássico. Sugiro nos unir e criarmos algo como um Grupo Brasileiro de Blogs Clássicos (ou outro nome que possamos combinar). Conheço algumas pessoas e blogs que fariam parte. Seria algo como o visto no blog http://clamba.blogspot.com/, algo como um ponto de encontro para nós, e divulgação mútua.

O Clube está aberto a todos aqueles que possuem um blog que trata do assunto. Aqueles que desejarem se associar, acessem por favor o endereço abaixo e conheçam detalhes de como fazê-lo.



Eu, que já encontrei amigos queridos por aqui, aposto na ideia do Clube. Espero nos nos encontremos por lá!

Danielle

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Selo "Blogueiro Amigo"


Filme, filmes, filmes! recebeu esta semana, do amigo blogueiro Antonio Nahud Júnior - autor do ótimo "O falcão maltês" - , o prêmio "Blogueiro antigo". Fiquei novamente muito honrada com a lembrança do Antonio. Não só com a lembrança, mas com as palavras que a acompanharam:

Leitor fiel e admirador do seu blog, que visivelmente faz um inteligente e bonito trabalho centrado no universo cinematográfico, escolhi-o para um PRÊMIO-SELO.

Portanto, sigo aqui as regras por ele apresentadas, que são as seguintes: publico o selo neste blog; destaco cinco blogs que admiro (e ainda não receberam a indicação); e os aviso da premiação. Segue minha lista.

Cinema Falado, do Luciano Ramos
Jornalístico, da Maurette Brandt
Revisão, por favor, de Telma Mazzocato

Obrigada, Antonio!