sexta-feira, 19 de novembro de 2010

"Quanto mais quente melhor" e os dois anos de Filmes, filmes, filmes!

Deixei passar, no dia 2 deste mês, o aniversário de dois anos do blog. Azar o meu, que perdi a chance de oferecer aos leitores esse bolo, presente de grego com que os mafiosos presenteiam o chefão da máfia de Chicago na deliciosa comédia de Bily Wilder "Some Like it hot" (1959), a grande vencedora da enquete do mês passado (50% dos votantes acharam-na a melhor de todos os tempos).
Mas, antes tarde do que nunca. O dia 2 de novembro não é dos mais risonhos para comemorarmos um aniversário. Agora que ele passou, podemos nos deliciar com a ironia desta e de uma porção de outras situações apresentadas na película - e pensar na própria ironia em que este blog se assenta, já que ele nasceu num Dia dos Mortos...

Ironia que salta aos olhos é o fato de uma comédia tão apimentada e hilária ter sido engendrada de uma relação extremamente conflituosa entre Marilyn Monroe e o diretor. Tony Curtis nos dá uns poucos detalhes sobre o caso no making of do filme inscrito na Edição Especial distribuída pela Fox. Porém, o astro prefere evocar com doçura e bom humor os momentos descontraídos vividos pela troupe. Por exemplo, na prova do figurino, após ser provocada pelos dois astros de que eles vestiriam trajes mais elegantes do que os dela, Marilyn teria levantado a blusa - sem sutiã - e lhes dito: "But you don't have this". Gentil até a morte, Tony preferiu reafirmar para a sua estrela a imagem que temos dela nas duas horas em que a vemos: Linda, de uma sensualidade meio juvenil e tola mas tão doce quanto o "Sugar" que lhe dá o nome.
A Trivia de Hollywood nos mostra outra Marilyn: uma m ulher de saúde física e mental já abalada que teria quase que enlouquecido seu diretor pelos constantes atrasos com que chegava ao set de filmagem e pelo esquecimento dos diálogos (algumas cenas teriam precisado ser repetidas 60, 70 vezes). Graças à mágica do écran, não conhecemos essa Marilyn.
É possível também que muitas dessas assertivas tenham sido estabelecidas pelo departamento de marketing da MGM, especialmente considerando que, em fins dos anos 50, a atriz vinha de uma estada no nova-iorquino Actors Studio - e, ao que tudo indica, uma estada aplaudida, em que ela teria sido considerada pário para Marlon Brando.


Não vale a pena, nessas linhas, nos aprofundarmos na persona pública e privada da polêmica atriz. Àqueles que desejam conhecê-la, recomendo o documentário sobre ela da série "Hollywood Collection" (vendida por aqui desde meados do ano), que disseca com argúcia aspectos de sua vida e obra. Descobrimos, por exemplo, que a imagem de tolinha adorável que Hollywood colou na atriz - e que, em alguma medida, ela também construiu para si - mascarava uma mulher que, para galgar os degraus da fama, não deixou de agir com algum sangue frio.
Vemos também o quanto essa imagem obrigou-a a repetir constantemente os mesmos tipos, frustrando seu desejo de experimentar no campo do drama. Uma pena: ao vermos a delicadeza com que
ela interpreta uma mulher problemática no último filme de sua carreira, "The Misfits" (Os desajustados, 1961), chegamos à conclusão de que quem saiu perdendo foi seu público.
Mas aqui quem nos interessa é a Marilyn cômica, insuperável mas infelizmente subestimada, como aconteceu a tantos outros cômicos que a antecederam e sucederam - só de pensarmos que as atuações de Chaplin nunca foram premiadas pela Academia de Artes Cinematográficas...
Com Tony Curtis e Jack Lemmon, a atriz compõe um dos elencos mais impecáveis do cinema, naquela que foi considerada, pela Entertainment Weekly, a melhor comédia de todos os tempos. A opinião recente da crítica faz eco à reação do público na época em que ela foi lançada, quando atingiu uma bilheteria que a pagou várias vezes.
Em "Some like it hot", Billy Wilder prova porque é mestre em seu ofício - e seu ofício o fez passear pelo drama, pelo romance e pela comédia, sempre magistralmente, que o digam "Sunset Boulevard" e "Love in the afternoon", duas outras obras primas.
"Some like it hot" tem tudo para agradar as mais variadas parcelas do público, que vão do espectador de primeira viagem até os cinéfilos mais inveterados... A mim ela sempre revela coisas novas, e eu a adoro cada vez mais. Nela, Wilder se revela um exímio garimpeiro do campo cinematográfico. Do drama mais pungente à comédia do estilo mais pastelão, há de tudo na película - testamento pilhérico das explorações do cineasta nos domínios da Sétima Arte.
O enredo beira a todo tempo o absurdo: para fugirem de Chicago após terem presenciado assassinatos comandados pela máfia, dois músicos são obrigados a se travestirem de mulheres e ingressarem numa banda feminina de jazz...
Para sustentá-lo, Wilder apoia-se nas tópicas que o cinema já havia produzido nos mais variados gêneros: o suspense, a ação, o romance, o musical e, é claro, a comédia. A história se passa em 1929, época em que a Bolsa de N.Y. estava prestes a colapsar, em que o comércio de bebidas alcoólicas era proibido, em que Mary Pickford era a maior estrela do cinema, as mulheres atingiram a tão almejada liberação feminina e o jazz era o ritmo que por excelência traduzia a euforia da sociedade moderna. A soma de referências a esse passado distante três décadas (mas cujos efeitos eram bem conhecidos) e dos gêneros cinematográficos que ainda faziam sucesso é responsável pelo surgimento de uma obra deliciosamente crítica e afiada.
A perícia com que Billy Wilder discorre sobre a linguagem dos mais variados gêneros cinematográficos à medida em que os alinha em seu filme soma-se aos três incríveis personagens principais que constrói: todos tão absurdos e geniais quanto a iniciativa do diretor de ironizar o modus operandi da indústria do cinema norte-americano à medida em que produzia um produto dela.
O passeio de Wilder pelos gêneros consolidados pela cinematografia é regido por um timing perfeito de comédia. O filme começa numa sequência que em nada deve aos filmes de gangsters protagonizados por James Cagney nos anos 30, regado a perseguições de mafiosos e sucessivas saraivadas de balas. Os bandidos vão dar num velório que se revela um bar ilícito, e a tensa trilha sonora é substituída pelo mais vigoroso jazz enquanto as pernas das coristas são enquadradas em primeiros planos. A alegria motivada pelo consumo do álcool nos remete às películas de William Powell & Myrna Loy, rodadas pouco depois do fim da proibição ao consumo de bebidas, nas quais o galã se revelava uma companhia mais interessante quando estava embriagado do que quando sóbrio. Todavia, Wilder não para nas referências ao passado, já que traz para sua obra um pimenta que, se o jazz ajudou a inventar desde os anos 20, por certo só pôde ser completamente saboreada nos 60, quando a censura do Hays Code recolhia os tentáculos que estendera sobre a indústria do cinema.
A principal responsável por temperar a película com erotismo é obviamente Marilyn. A atriz, aqui, repete mais uma vez o tipo da mulher sexy e inocente que tornou célebre. Porém, se essa obra se destaca em sua filmografia é porque o diretor conseguiu trabalhar ao longo dela símbolos que acenam para essa tensão entre a sexualidade e a ingenuidade. Por mais decotada que se apresente, a atriz nunca aparece vulgar. Nela, aquele desejo de ascenção social que sua personagem de Gentlemen prefer blondes" (Os homens preferem as loiras, 1953) já hilariamente verbalizara se soma ao sonho patético e genuíno de encontrar um saxofonista que a ame (já que ela só consegue se apaixonar por saxofonistas). A personagem realiza seu sonho romântico de um modo um tanto quanto enviesado, ao apaixonar-se por um suposto milionário arremedo de Cary Grant que não é outro que não... o que fugia da máfia.
O ponto alto do filme é justamente a releitura que Wilder faz da temática romântica. O plano de conjunto que toma pela primeira vez o hotel paradisíaco de Miami onde a comédia sexual se desenrolará, com direito a um coro de moças que canta uma canção alegre, nos dá a impressão de que veremos um daqueles adoráveis musicais da MGM. No entanto, uma outra redefinição nos rumos da fita se opera quando nos é apresentado aquele que (surpreendentemente) se tornará o par romântico de Jack Lemmon, um velho gabiru milionário.
Aliás, a sequência que narra o desenvolvimento dos dois pares românticos é uma das melhores de todos os tempos. Por meio de uma montagem paralela vemos a evolução de duas conquistas atípicas. Enquanto uma canção sensual acompanha as investidas de Marilyn ao supostamente frígido Curtis, um passional tango argentino mostra que Lemmon e o gabiru foram feitos um para o outro...

A ausência da censura permite que o diretor fale o mais abertamente possível sobre sexo, à maneira das películas anteriores à vigência do Hays Code e das comédias teatrais que influenciaram suas variantes cinematográficas. Além de finalmente poder povoar a ação de joelhos, pernas e decotes - algo impensável durante a censura -, Wilder pôde fazê-la ser perpassada por trocadilhos sexuais incisivos e modernos. A última sequência da película, em que o milionário aceita se casar com a personagem de Lemmon mesmo sabendo que ele é homem, já que "Nobody is perfect", é o mais perto que vi o cinema da época chegar da aceitação do homossexualismo. Sim, tal menção é feita por um viés cômico, porém, é reforçada pelo sentimento dúbio que Jerry (ops, Dafne) tem pelo noivo, "O homem que lhe daria segurança.", "O melhor homem que jamais conhecera.", "O homem cujos sentimentos ele não queria magoar.".

"Some like it hot" oferece uma deliciosa mistura de cinema clássico e modernidade que o torna uma das mais interessantes vias de acesso das novas gerações ao cinema produzido nos anos áureos de Hollywood.