sexta-feira, 26 de março de 2010

O grande Gatsby (1974): revisitando "The good old days"



"O Grande Gatsby" (1925) entrou em minha vida primeiro pela pena de Scott Fitzgerald, há uns bons 10 anos.
Entrou e não saiu mais - curioso como alguns livros que a gente lê passa a fazer parte de nossas vidas. Li-o num verão na praia - o ambiente e a história se misturaram, e eu já não era a estudante de Letras passando as férias com a família no litoral paulista, mas uma personagem daquele romance feito de festanças e charleston, amor e ressentimento, e de uma luz verde que brilhava insessantemente através da baía de East Egg (de novo a luz verde...), convidando o mocinho romântico à ilusão. Naqueles dias de leitura, eu tinha certeza de que, se forçasse as vistas, enxergaria numa daquelas ilhotas de Itanhaém a mesma luz verde que enredou Gatsby, obrigando-o a se fixar do outro lado da baía da mocinha que ele amava.
A prosa de Fitzgerald tornou-se pra mim ainda mais fascinante com o tempo. Clara Bow, a adorável e espevitada IT girl, ajudou-me a conhecer Daisy Buchanan, pródiga em beleza, sex-appeal e leviandade. Ambas são marcas do tempo, daquela época em que os carros iam ficando cada vez mais velozes, as mulheres mais liberadas e o Deus Todo Poderoso ia sendo substituído cada vez mais frequentemente por simulacros terrenos (pelo "Money, money, money" do "Cabaret", ou então, pelo moderníssimo outdoor com os olhos que tudo veem, de "O Grande Gatsby").

"The Great Gatsby" (1974)

Mas, em "O Grande Gatsby", a existência capitalista dos ricos trazia em seu fundo elementos invisíveis à superfície. Admiro em Scott Fitzgerald como ele consegue descamar seus heróis ao longo de suas histórias. A intangível "feiticeira ruiva" do conto homônimo, que dá razão à vidinha burguesa de Merlin Grainger, não passava de uma bailarina escandalosa; o metódico e centralizador Monroe de "Último Magnata" era, afinal, um romântico, enredado por uma mulher comum por ver nela a esposa amada que morrera; mais romântico ainda era Gatsby, o ex-soldado e, agora, arrivista social, que construíra nome e fortuna para entregá-los numa bandeja à fútil Daisy, cuja paixão por ele depois descobriremos não passar de um flerte (o flirt, tão na moda naqueles good old days).

Scott Fitzgerald

Scott Fitzgerald era um romântico numa época de perda das ilusões (pela Grande Guerra, pelo capitalismo selvagem) e desejo frenético de se experimentar experiências fugazes. Gatsby é um retrato disso: os scrapbooks que faz de Daisy são prova de que ele desejava parar o tempo que corria cada vez mais furiosamente e tentava impedir que as pessoas cultivassem relacionamentos duradouros. Quer mais romantismo que o modo como ele enxerga Daisy - tão bonita e (moralmente) quebradiça quanto a flor que lhe dá o nome - que sempre vê à distância, filtrada pelo grande amor que tem por ela, o qual apaga seus inúmeros defeitos? Isso tudo construído numa prosa elegante e, em certo sentido, clássica, que ousa no conteúdo e não na forma.

Redescobri o escritor sensacional ao ver, no final da semana passada (o atraso do post é culpa da correria de início de semestre...), a versão cinematográfica do romance rodada em 1974 e estrelada por Mia Farrow e Robert Redford, a terceira de suas quatro versões (as outras são de 1926, 1949 e 2000).
É um belo filme: boa escolha de elenco, trilha sonora, locações, fantástica fotografia e figurino, tudo contribuindo para a reconstrução do high-life de Long Island tal qual Fitzgerald o via. Mia Farrow é uma formidável Daisy. Os trejeitos artificiais que faz quando a câmera a toma pela primeira vez - momentos antes d'ela ser apresentada a Nick Carraway, o narrador - apreendem bem a mocinha fútil que ela, no final das contas, se provará. A personagem representa um tipo que é em si artificial - uma boneca moldada para o deleite dos grã-finos, cujo maior atributo é enfeitar as reuniões e festas por eles organizadas. Daisy até demonstra alguma consciência ao rogar para que a filha seja suficientemente bela e tola para encarar a vida que a aguarda ("Garotas belas e tolas podem usar as roupas que elas escolherem", ela consola a filhinha). Porém, no final o que subsiste é seu papel de flapper na extravagante peça de teatro em que ela entrou desde que teve idade para flertar.
Gatsby se apaixona por uma ilusão e deseja tomá-la para si. Porque sabia bem que mulheres como Daisy não se casavam com homens pobres, constrói um império maior que o homem com o qual ela havia se casado. E dá festas e mais festas em sua mansão, esperando pela personagem principal, sempre convidada mas que nunca aparece (afinal, ricos tradicionais não se misturavam aos novos-ricos).

Gatsby e Daisy se veem pela primeira vez depois de muito tempo, e através de uma moldura circundada por flores. Novamente a ilusão se sobrepõe à realidade...

É sintomático, portanto, que o reencontro de ambos seja cercado por aquilo que os separou: dinheiro. Fantástico, aliás, como Fitzgerald escreve nesse momento uma poesia do dinheiro. Gatsby, numa ansiedade que trás de volta o jovem oficial que ele foi, embeleza o jardim de sua casa para receber a moça e faz cair sobre ela uma simbólica chuva de camisas importadas (como essa cena, que nem me lembro existir no livro, fica bonita no filme!): inunda-a com dinheiro.

No final, porém, o que permanece é uma consciência de classe bastante forte. Gatsby perde sua ambiguidade para se parecer bastante com Nick, o primo pobre de Daisy, narrador da história. Ao contrário dos ricaços, que têm uma caixa registradora no lugar do coração, o herói de Fitzgerald acaba assumindo a culpa de um crime cometido por Daisy, morrendo por ela (o que há de mais romântico?). A canção que fecha o filme é uma balada irônica dessas diferenças sociais: Ain't we got fun (Whiting, Kahn, Egan, 1921).

In the winter in the Summer
Don't we have fun
Times are bum and getting bummer
Still we have fun
There's nothing surer
The rich get rich and the poor get children
In the meantime, in between time
Ain't we got fun?

Porém, o narrador fica do lado do protagonista e é, de certa forma, aquele que o redime, afinal, é através de seus olhos que conhecemos o que há de pérfido na sociedade dos roaring twenties.


domingo, 14 de março de 2010

Um corpo que cai (1958): o amor e a loucura segundo Hitchcock



Ontem revi o extraordinário "Vertigo", um dos grandes Hitchcocks, filme espantoso, que continua a impressionar depois de ser revisitado 10 vezes (eu que o diga...). Surpreende-me a sólida visão de conjunto que Hitchcock demonstra na maioria de seus filmes. Ele sabia o que queria, e raramente deixava de realizá-lo. Por isso, deixou-nos inúmeras obras-primas (desculpem-me o paradoxo), que têm a rara qualidade de interessar desde o espectador ingênuo até o mais exigente - coisa de mestre, que conhece a indústria do cinema tão perfeitamente ao ponto de saber que o valor artístico da película deve ser somado ao seu potencial mercadológico. "Vertigo"- que recebeu no Brasil o título de "Um corpo que cai" - é um dos meus preferidos.
Vemos nele um Hitchcock maduro, plenamente consciente de sua arte, que consegue levar a um alto grau de excelência elementos cinematográficos que ele ajudou a criar. A coerência do resultado final já se faz anunciar pelo título, que a horrível tradução brasileira escamoteou -Vertigo: medo de altura; vertigem; tonteira; sensação de desfalecimento; perda momentânea do auto-controle; desvario; loucura. Toda esta gama de significados é explorada em "Vertigo". A perseguição inicial do policial ao bandido, que leva a personagem de Jimmy a descobrir sua doença e culmina com a morte do policial que tentara salvá-lo e seu afastamento da Polícia é apenas o primeira deles.


À caça ao bandido - elemento recorrente nas histórias de suspense - se sucede o diálogo entre o então ex-policial John Ferguson e Midge Wood. A conversa é aparentemente frívola: o homem, enquanto vê a amiga desenhando roupas íntimas, não esboça mais que uma vaga preocupação com sua doença e quase nenhuma culpa pela morte do colega. Porém, o diálogo acaba por apresentar outros elementos de tensão. A câmera abandona o plano de conjunto em que focalizava Midge para tomá-la num primeiro plano no exato momento em que ela relembra ao amigo que fora sua noiva por "três semanas inteiras". John, testando sua saúde, sobe a escada que Midge lhe oferece e, olhando pela janela de vidro, percebe a altura que separa o apartamento do rés-do-chão, desfalecendo nos braços de Midge. Hitch faz aqui cinema puro - aquele em que o modo como imagens e sons se agrupam dizem mais sobre os personagens que o enredo. Sabemos que Midge é o elemento forte da relação, o que ampara, protege e ama o outro. John é sensível, frágil, por isso tende a fugir de compromissos e problemas. No entanto, a tonteira que derrubou-o da escada é prenúncio de vertigens mais avassaladoras.



Hitch apresenta em "Vertigo" um complexo triângulo amoroso que penso ser altamente tributário de Freud. Conheço pouco a teoria, portanto, não farei mais que indicar seus componentes mais flagrantes e o modo como eles se movem. Midge é uma jovem espirituosa e feminista mas, no fundo, tem uma amargura enorme por não ter se casado com John. Descobrimos que o impedimento ao casamento fora levantado por ela mesma, depois daquelas "três semanas inteiras de noivado". Por quê? Talvez devido à inversão de papéis da relação? A moça liberal, que se denomina a mãe do amigo - "Don't worry, John-O, mother is here", diz ela quando ele purga no manicômio a culpa pela morte de Madeleine -, queria na relação algo que ela nunca poderia ser - sim, porque ela era a castradora, não estava em sua personalidade ser o elemento passivo. John, débil e infantil, queria se ver livre da mãe-amiga, mas era demasiadamente frágil para tomar qualquer atitude - ora, é a moça que o deixa. Caberia à frágil e dependente Madeleine o papel de salvadora deste homem passivo? Caberia a ela devolver ao homem castrado a sua masculinidade? Cada vez mais me parece que sim. Todavia, embora John se transforme em homem para amparar Madeleine, ele continua detentor daquela personalidade sensível e romântica que, na tradição ocidental, cabe às mulheres. O romantismo exacerbado transforma-se num amor passional que, na segunda metade do filme, dará lugar aos excessos do homem apaixonado. Depois de morta Madeleine, ele tentará ressucitá-la na pele da sexy Judy, que parecia assemelhar-se à morta apenas na aparência - e, ainda assim, assemelhar-se vagamente. As cenas finais, em que John muda o guarda-roupa e os cabelos da mocinha banal até transformá-la na misteriosa e intangível Madeleine, parecem também simbolizar sua passagem de criança passiva a homem empreendedor - já que, até então, ele se mantinha quase que exclusivamente como o voyeur da situação. Aqui já não resta mais nada do homem pacato do princípio da história.

O desejo louco, a vertigem do amor - e aí cabem bem aquelas outras definições de "vertigo" - fazem com que ele some o que de mais intenso há nos dois sexos no que se refere ao relacionamento amoroso (estou tentando aqui pensar nas diferenças que havia nos anos 50) até simbolicamente matar Judy para novamente dar vida a Madeleine e, por fim, contribuir para que Judy/Madeleine literalmente morram. John, agora plenamente masculino e assertivo, quer legislar sobre a vida e a morte da identidade social de Judy. Mas já o pai de Héracles da tragédia homônima dizia que a moderação era necessária sobretudo àquele que tinha poder. Héracles não deu ouvidos ao pai e enlouqueceu. John é igualmente punido por desdenhar da voz da tradição.
A entrevista de Hitchcock a Truffaut - entrevista cuja versão definitiva a Companhia das Letras publicou por aqui faz alguns anos - dá a ver de modo fascinante a personalidade artística daquele que conduziu com pulso firme o enredo de "Vertigo" e de tantos outros clássicos.
Ao falar sobre o relacionamento amoroso tecido neste filme, um Hitch sem papas na língua alude ao que ele chama de "sexo psicológico": "é (...) a vontade que anima este homem de recriar uma imagem sexual impossível; para dizer as coisas simplesmente, esse homem quer se deitar com uma falecida, é pura necrofilia.". O diretor ainda aprofunda a explicação, motivando uma das poucas surpresas que Truffaut explicita ao longo da entrevista que faz com o diretor: "Todos os esforços de James Stewart para recriar a mulher são mostrados, cinematograficamente, como se ele procurasse despi-la em vez de vesti-la. E a cena que eu sentia mais profundamente era quanto a moça voltavam depois de ter tingido de louro o cabelo. James Stewart não fica totalmente satisfeito, porque ela não prendeu os cabelos num coque. O que isso significa? Significa que ela está quase nua diante dele mas ainda se nega a tirar a calcinha.".

As linhas deixam perceptível que a sexualidade não era algo tranquilo para Hitchcock. Aliás, a trivia hollywoodiana já apresenta inúmeros exemplos relacionados ao assunto: que Hitch teria se deitado com a esposa apenas uma vez; que ele havia se gabado por ter sido seduzido por Ingrid Bergman e se deitado com ela, etc. O diretor era um feixe de medos e complexos que daria trabalho a algum discípulo de Freud se ele resolvesse tentar se livrar deles. Não sei se ele chegou a frequentar um psicanalista. Felizmente, ele nunca deixou de ser perseguido por esses fantasmas que tomaram forma, de modo mais ou menos bem acabado, em toda a sua obra.
Hitchcock é pródigo ao dar à sociedade moderna uma visão complexa de seu psiquismo. Ele entra nos lares burgueses e mostra os anseios e as taras que subjazem ao exterior aparentemente são e pacífico. O relacionamento homem-mulher que culminava no casamento e na felicidade eterna - receita pregada no grosso dos filmes do período - era muito mais complexo do que parecia. Herança de Freud e tantos outros intelectuais que flagraram e explicaram a desfragmentação dos elementos que sustentavam o modo de vida ocidental - a igreja, o paternalismo, a ciência positivista -, Hitchcock mostrava que o homem podia não mais ser o indivíduo rijo responsável pelo sexo oposto. O diretor inglês é um dos indivíduos que mais bem compreendeu a sensibilidade moderna. Sua obra toda paga um tributo a ela.
"Vertigo" é seu mais arrematado exemplo e James Stewart, seu melhor porta-voz. A simplicidade e delicadeza com que James desempenha seus papéis me surpreende cada vez mais. Ele desempenhou um mesmo tipo durante décadas, porém, fê-los evoluir de acordo com as necessidades do diretor. Ele foi um dos primeiros stars do sexo masculino que chorou em frente das câmeras - numa época machista como os anos 30, bem se pode imaginar como isso não taxava negativamente os artistas. Os personagens que ele deu ao público nos anos 30 e 40 ajudaram a tornar verossímil não apenas John Fergusson mas todo o "Vertigo", que conhecemos em grande parte por seu próprio ponto de vista.
Vejamos as cenas em que ele conhece Madeleine e, a pedido de seu suposto esposo, passa a persegui-la. Vêmo-la primeiramente de costas (num plano de conjunto que toma todo o restaurante) e depois de perfil (num close-up). Ainda que se aproxime, ela continua a ser para John uma figura misteriosa - o que se deve em grande medida à imagem (mentirosa) que seu esposo pintou dela para John: ela estaria enlouquecendo, possuída pelo espírito da bisavó morta por amor. Uma imagem romântica...

O mistério que emana da mulher é, ironicamente, maior do que se supõe a princípio. Madeleine não é apenas uma mulher fugidia, ela é uma mulher que não existe (para perceber isso logo do princípio, o espectador precisa ver o filme uma segunda vez). É personagem ficcional, saída da imaginação de um homem calculista que, para matar a esposa, precisa de uma cúmplice (Judy/Madeleine) e de um bode espiatório (John). Ela é literatura (ou então, cinema). O modo como o homem apaixonado a vê em grande medida recupera-a como objeto de arte. Ela às vezes se assemelha às estátuas gregas (como no fotograma acima). Às vezes, a um quadro (como na fascinante cena da floricultura, em que o ambiente cinza ao redor de Jimmy só faz intensificar a explosão de cores em que a moça está mergulhada, emoldurando-a).



Depois de enquadrada, John vê Madeleine observar o quadro de sua ascendente. A linha que divide realidade e ficção parece desaparecer.


Hitchcock dá a ver o artífice competente que é, criando em "Vertigo" leitmotivs que perpassam todo o filme. O modo como Madeleine observa sua bisavó é semelhante ao modo como John Ferguson observa Madeleine - e é o ramalhete de rosas que levará John casualmente a encontrar Judy.
Madeleine olha o quadro; John a olha; nós os olhamos. Para esse voyerismo multiplicado há a excelente expressão francesa mise en abyme, (mal) traduzida entre nós por metalinguagem, e que literalmente significa “posto no abismo”, aquele efeito obtido por dois espelhos: quando uma imagem contém uma cópia menor dela, e assim sucessivamente. Ao fim e ao cabo, o público é tão ludibriado quando o protagonista pela cena que se oferece diante de si como espetáculo. Esta imagem que o filme constrói é, aliás, oriunda do mesmo campo semântico do redemoinho que se insinua primeiro nos créditos, repetindo-se no decorrer da obra no intuito de glosar a sensação de entontecimento, de falta de chão, de desvario do protagonista. (Este parágrafo só nasceu hoje, 29 jan. 2014, depois de dois meses de minha revisita ao filme, desta vez na telona do paulistano Espaço Unibanco-Augusta...). 

O tom esverdeado que circunda Madeleine quando ela caminha pelo cemitério repete-se nas luzes artificiais que envolvem Judy - tornada Madeleine -, no quarto barato de hotel. Hitchcock fala sobre esses dois usos do verde na entrevista a Truffaut, mas nada diz sobre a abundância de verdes que envolve a personagem de Kim Novac (o carro de Madeleine, o vestido de noite que ela usa quando John a vê pela primeira vez, o gramado em frente ao museu, a saia de Judy). O elemento verde é reiterado ad nauseam ao longo de "Vertigo", inebriando o ex-policial ao ponto de levar a mente até certo ponto cartesiana que cabe aos indivíduos de sua profissão a acreditar na história suspeita contada pelo amigo. Sem falar no leitmotif musical criado por Bernard Hermann, já que os violinos glosam, no plano sonoro, a paixão crescente de John por Madeleine.
"Vertigo" é uma obra de ficção que, enquanto explicita a filosofia de Hitchcock - alguns filmes são fatias de vida; os meus são fatias de bolo - trás à baila questões pungentes da sociedade contemporânea. Vemos desfilar um belo concerto criado pelos olhos apaixonados de John, mas também conhecemos o poder terrível que pode ter a ficção. Monroe (do O último Magnata, de Scott Fitzgerald), que amadureceu no mundo do cinema e ajudou a delinear as fronteiras do medium, descreve a aparição de Kathleen de modo muito semelhante ao que faz o John Fergusson criado por Hitchcock - e ambos acabam por perder a única mulher que poderia salvá-los, mulher que eles mesmos criaram. Porém, as respostas não são simples, se pensarmos que, com a crise da religião, a arte aparecia como o único elemento capaz de dar sentido à vivência cotidiana.

sábado, 6 de março de 2010

Oscars e Razzies 2010: entre congratulações e gracinhas são distribuídos prêmios e "prêmios" cinematográficos



Por um bom tempo fui fanática pelo Oscar. Minhas idas ao cinema neste ano fizeram-me pensar diferente. Porém, não tão diferente que eu não gastasse um tempo no site da Globo vestindo a Sandra Bullock para a festa da qual ela, segundo dizem, tem boas chances de sair premiada. Mesmo descrendo da sanidade dos membros do comitê de seleção - não creio que uma porção dos indicados do ano deram a outstanding performance historicamente necessária para o merecimento da estatueta - decidi atribuir o prêmio à Sandra logo de início. Não vi a performance da atriz em "O lado cego" ("The blind side", que, como vários outros indicados, não chegaram ao Brasil em tempo de serem conferidos antes da entrega do Oscar). Porém, os prêmios para os quais Sandra foi indicada, sua reação aos mesmos e o joguinho do site da Globo já dão elementos para o que pretendo dizer.

A lista de indicados ao considerado "maior prêmio do cinema mundial" deixou-me incrédula. Minha reação talvez fosse diferente se eu não tivesse acabado de ver o medíocre "Up in the air" (batizado por aqui "Amor sem escalas"), uma coisinha irritantemente óbvia que concorre a 6 prêmios (melhor filme, diretor, ator, 2 vezes por atriz coadjuvante e roteiro) e já ganhou outros surpreendentes 44 de acordo com o IMDB. Se ele ganhar o prêmio de melhor filme, aí vou ter certeza de que os membros da academia viajaram tanto quanto George e o diretor.


É certo que há alguns grandes trabalhos entre o punhado de indicados. Não direi nada sobre "Bastardos inglórios" e "Up!", que me ofereceram dois dos mais instigantes momentos que tive no cinema no ano passado - já falei deles no primeiro post do ano.
"Avatar" é outro filme interessante - se não como roteiro (embora eu tenha gostado do tributo que James Cameron paga à tecnologia, contando através dela a história de uma civilização ligada em rede), como criação visual. Não acho que a película mereça pauladas por optar pela tecnologia em detrimento do roteiro. Pelo menos ela optou por algo - ao contrário de "Up in the air". Cameron construiu uma "quarta dimensão" (como Cendrars se refere ao falar do mundo à parte criado pelo cinema) de modo incrivelmente verossímil. Sou grata a ele por isso, pois meus 6 olhos (sim, usei 2 pares de óculos no cinema...) me permitiram experimentar uma das coisas mais espetaculares a que tive acesso nos últimos tempos. Outro digno de nota é "Preciosa", especialmente pela performance sensacional da novata Gabourney Sidibe e de Mo'nique. Este, como "Bastardos" e "Up!", merece uma menção um pouco mais cuidada que esta que faço agora. Aliás, a resenha feita por meu amigo blogueiro Danilo merece ser lida, pois faz jus à qualidade do material.
Agora, não entendi o que Penélope Cruz faz entre as indicadas ao prêmio de melhor atriz coadjuvante. É certo que tampouco concordo que a irritante Anna Kendrick tenha tido uma performance excepcional em "Up in the air". Porém, ao meu ver, o filme que a fez "merecer" a indicação - "Nine" - só é digno de nota porque faz Sophia Loren dançar e cantar (ainda que cante canções inanes, ela canta!). Aliás, "Nine" ainda concorre, surpreendentemente, na categoria "canção original". Infelizmente, a performance de Penélope em "Abrazos Rotos" - essa sim tinha um sopro de novidade - não foi lembrada. Embora Almodóvar seja um dos estrangeiros queridinhos de Hollywood, os membros da banca preferem, mesmo, ver filmes nacionais...

Meu desânimo em relação ao Oscar deste ano levou-me ao "Razzie", entre nós conhecido como o "Troféu Framboesa", entregue aos "Melhores piores" do ano. E então, deliciei-me.
Na apresentação do prêmio, os idealizadores explicam seu surgimento: Hollywood já se auto-incensava demais. Precisava de alguém que lhe apontasse as falhas. É o que eles tentam fazer. Encontrei ali algumas coisas que me deram um desgosto enorme no ano passado. Robert Pattinson, o vampiro vegetariano da saga Crepúsculo, arrebenta a boca do balão com duas indicações "principais", "pior ator" e "pior par romântico". O rapaz, namorado de sua "estrela" na vida real, merece ambos os prêmios: só um verdadeiro ator conseguiria fazer cenas de amor tão insossas com sua namorada de verdade... "Lua Nova" ainda concorre como "Pior remake" (talvez devêssemos indicá-lo a remake desnecessário, uma vez que ele não consegue ser pior que o original) e pior roteiro. Assim, a equipe do Razzie demonstra que "New Moon" é um filme para, realmente, "não deixarmos de perder" - como diz meu pai. Esta edição do Razzie é ainda mais especial porque escolherá os piores da década. Concorrem nomes como o desagradável Rob Schneider, o simpático porém canastrão John Travolta e a falsificada Mariah Carey (que, talvez, mereça ser dispensada do fardo por seu desempenho competente em "Preciosa"). Falo apenas dos que mais me saltam às vistas - a lista completa está no site).
A ironia na indicação do Razzie é o fato de Sandra Bullock concorrer ao troféu (por "All about Steve" - aliás, o trocadilho com o Oscar winner de 1950 "All about Eve" parece não ter dado sorte...) no mesmo ano em que concorre ao Oscar. Os organizadores do "Razzie 2010" ressaltam que, se ganhar ambos, a atriz atingirá o feito inédito de receber o mais temido "prêmio" de pior um dia antes de receber o mais esperado prêmio de melhor. A surpresa risonha de Sandra com a indicação fecha a ironia da questão: "Uau, estou concorrendo, que fantástico! Com certeza estarei lá pessoalmente para receber o prêmio, se ganhar".

Ano que vem, a indústria da propaganda do cinema norte-americano fará 100 anos. O gesto de Sandra e a bonequinha dela que o site da Globo nos convida a vestir são provas de que essa indústria está longe de se aposentar. Por mais talentosas que as celebridades do mundo cinematográfico sejam - e Sandra é uma ótima atriz em vários momentos - , elas ainda precisam aparecer para que o público deseje vê-las nas telas. Falem mal, mas falem de mim...
O Razzie pode até nos proporcionar alguns momentos de diversão, mas ele próprio, com sua missão pseudo-moralista, só faz aumentar a luz dos holofotes que iluminam as stars de ambos os sexos que iluminam o céu hollywoodiano. Ao gravitar invariavelmente em torno de personalidades conhecidas, o Razzie acaba por se assemelhar mais ao Oscar do que ele desejaria (ou, será que ele não deseja exatamente isso?). Razzie só faz aumentar a publicidade em torno dos artistas celebrados por público e/ou crítica. Seu papel normativo é nulo - Sandra Bullock que o diga.
Voltemos à lista dos indicados ao Oscar. Quantos não são os nomes que sempre vemos por lá? Quase sempre há um ou outro artista novo, porém, eles não passam de estranhos no ninho. O lugar físico que Fernanda Montenegro ocupou na cerimônia do ano de 1999, quando concorreu ao prêmio de melhor atriz por "Central do Brasil" ( na gaiola do teatro, lembram-se?), é simbólico disso.
Chateio-me ao ver um filme supervalorizado só porque ele está recheado de celebridades. Chateei-me ao ver uma Sophia Loren canastrona em várias de suas cenas de "Nine". Quem a viu em maravilhas como "Um dia especial" ("Una giornata particolare", 1977) sabe que um desempenho tão aquém de seu talento só pode se dever ao trabalho frouxo do diretor. Também, num filme que tem canções tão pouco inspiradas como "My husband makes movies" (cantada por outra oscarizada, Marion Cotillard), o diretor pouco pode ajudar. Inacreditável que uma obra baseada no memorável "8 1/2" (1963) fosse vir a ser tão capenga.
Então, para não trombar nos bonitinhos, mas ordinários Robert Pattinson e Kirsten Stewart - ambos confirmados na festa do Oscar; para não ouvir o desempenho banal de George Clooney ser elogiado; para não correr o risco de ver novamente trechos de "Up in the air" e nem ouvir mais uma vez a trilha sonora sem graça de "Nine", amanhã seguirei o conselho do meu pai e não deixarei de perder o Oscar. Já convidei Liza Minelli para me fazer companhia. Ela chegou há poucos dias aqui em casa trazendo consigo uma das coisas mais fascinantes que já vi, "Cabaret" (1972). Certamente, amanhã passarei uma noite bem mais emocionante.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Desfrutando de um Intermezzo: uma vista d’olhos no primeiro papel americano de Ingrid Bergman


Na semana retrasada, submeti minha mente descansada das férias (curtíssimas, mas bastante proveitosas) à missão de fazer um vídeo sobre um filme de 1939 para inscrevê-lo num concurso promovido por um usuário do You Tube. Não ganhei o concurso, em compensação, me diverti fazendo um mini-documentário sobre “Intermezzo: a love story” - filme em que Leslie Howard e Ingrid Bergman dividem a cena.
O “Intermezzo” de 1939 nem de longe é o meu filme preferido de Ingrid Bergman. A versão sueca da película, também estrelada pela atriz, é melhor – aliás, foi com ela que inaugurei esta paragem. A maior relevância do filme está, mesmo, no fato de ele inaugurar a carreira da atriz em Hollywood – carreira que deu-nos preciosidades como “Casablanca”, “Interlúdio” e o profético “Rage in Heaven”, com que cruzei apenas anteontem e sobre o qual definitivamente ainda falarei mais. Isso por si só já o torna digno de nota.
Para fazer esse pseudo-documentário, apoiei-me especialmente no curioso “Ingrid Bergman: my story”, escrito por dela e Alan Burguess – livro cuja assistematicidade (ele equilibra-se entre o depoimento e a autobiografia – e tantas são as peças pregadas pela memória... –, a biografia e o tabloide) curiosamente coaduna-se com a vida polêmica e, porque não dizer, amoral da atriz.
Demorei um pouco para criar coragem e submeter a vocês o vídeo, no qual, como Paulinho Soares, eu falo “com a língua enrolada” (“Do you like it, macacada?”). Culpa da nacionalidade do dono do concurso... Bem, logo saberemos if you liked it... Podem me dizer a verdade ou, então, não dizer nada, caso fiquem com pena...
O vídeo está no fim da postagem. Com ele, quis dizer mais ou menos isso:


Tudo começou quando uma jovem atriz sueca deixou o marido e a filha pequena para se aventurar do outro lado do oceano. Pouco poderia ela imaginar que isso mudaria sua vida. Ela era Ingrid Bergman e a razão de sua viagem, o filme norte-americano “Intermezzo”.
Era 1939 e Miss Bergman tinha 23 anos. A oportunidade surgiu depois que ela fez um punhado de filmes na Suécia. Seu primeiro papel creditado foi em “Munkbrogreven” (O conde de Munkbro”, 1935). Um ano mais tarde, foi dirigida pelo importante diretor sueco Gustaf Molander em “Pa solsidan”.

Ingrid Bergman em "Munkbrogreven" (1935)


No set de "Munkbrogreven"
Fonte: Ingrid Bergman: História de uma vida

Porém, sua carreira deslanchou meses mais tarde, noutro filme de Molander, “Intermezzo”, no qual desempenhou o papel de Anita Hoffman, jovem pianista que se apaixona pelo famoso violinista Holger Brand, seu ídolo e pai de uma de suas alunas. Ingrid não parecia nem um pouco embaraçada por co-atuar com Gösta Ekman, cuja carreira cinematográfica já estava consolidada. Ao contrário, como se pode ver pela paixão e vivacidade que ela emana nas cenas que divide com ele.

com Gösta Ekman em "Intermezzo" (1936)
Fonte: Ingrid Bergman: História de uma vida



A película ficou conhecida nos Estados Unidos. Não demorou para que o produtor David O. Selznick, dono da Selznick International, enviasse a caçadora de talentos Katherine Brown à Suécia com o objetivo de contratar a jovem atriz. Miss Bergman acabou por assinar um contrato para rodar uma versão americana da fita.

Ela deixou esposo e filha na Suécia com o objetivo de para passar três meses em Hollywood.
Suas lembranças de quando chegou na capital do cinema são curiosas. Em sua autobiografia, ela afirma que ninguém se surpreendeu com seu visual. De fato, ela não se assemelhava às demais estrelas de Hollywood e tampouco queria se parecer com elas. Ingrid lembra que Selznick desejou transformá-la antes de mandá-la ao estúdio: ela precisaria consertar os dentes, fazer as sobrancelhas e usar maquiagem, segundo ele. Ela afirma ter se negado a ser construída e dito a Selznick que estaria disposta a voltar à Suécia caso ele insistisse: “Eu pensava que o senhor me tinha visto no filme Intermezzo, que gostou de mim e enviou Kay Brown à Suécia para me contratar. Agora que me viu, o senhor quer mudar tudo. De modo que prefiro não fazer o filme. (...). Tomo o primeiro trem e volto para casa.” (p. 55).


Ainda bem que a atriz foi tão resoluta e, ao mesmo tempo, não tomou o trem de volta para casa, ou então teríamos perdido uma das melhores atrizes de todos os tempos.
Em "Intermezzo: a love story”, versão do filme rodada em 39, ela repete sua personagem da película sueca, desta vez tendo como galã outro ator conhecido, Leslie Howard. Ingrid está luminosa no filme. O fato de não estar falando sua língua nativa em nada a atrapalha. Ela interpreta de modo sutil e preciso o papel de uma jovem passional que sabe não passar de um “intermezzo” na vida do homem que ama. O título funciona perfeitamente. “Intermezzo” é uma peça musical ou dramática executada entre dois atos de uma peça teatral ou ópera. Efetivamente, a bela pianista sabe que Holger precisa voltar à esposa e aos filhos – todos os “maridos honrados” retratados nos filmes da época precisavam...
Porém, o “intermezzo” vivido por ambos já basta para fazê-la cativar o público. Não muitos anos depois disso, o nome da atriz apareceria sobre o título da fita, acima do nome de Leslie Howard que, por sua vez, constava minúsculo abaixo do título...


Em suas memórias, Miss Bergman também ressalta uma característica de Selznick que fê-lo odiado por muitos diretores: ele interferia em todos os aspectos dos filmes que produzia. Selznick teria substituído o diretor Gregory Ratoff para dirigir pessoalmente a atriz em sua primeira cena. Vou descer aos detalhes apresentados por Ingrid porque o processo de produção cinematográfica positivamente me fascina...

Selznick teria dito a Ingrid: “É o seu primeiro impacto sobre o público americano e tem que ser sensacional (...) tenho que conseguir o impacto de um novo rosto que chegou às telas americanas, de tal modo que a plateia seja apanhada de surpresa e exclame ‘Ahhh’.”.

A cena era simples: Ingrid apenas precisava chegar na casa de Holger, tirar seu casaco e chapéu e entrar na sala. No entanto, diz a atriz que o produtor repetiu a cena inúmeras vezes, até depois de o filme ter sido terminado. Vou dar novamente lugar à Ingrid que apresentará mais detalhes:

“Já tinha chegado o meu último dia e a minha última hora. Em 1939, tomava-se um trem em Los Angeles para atravessar a América, e depois pegava-se o navio em Nova York. De modo que havia um carro à espera para me levar ao trem. ‘Não. Mandem esperar. Mais uma tomada.’ ‘Mas David, eu tenho que apanhar minha bagagem em casa’. ‘Nós mandamos apanhar. Apanhem a bagagem da Senhorita Bergman. Mandem um carro. Você alcançará o trem, não se preocupe.’

Eu tive que sair correndo do estúdio, ainda com as roupas que estava usando no set; gritar adeus para a equipe e atirar-me no carro para alcançar o trem segundos antes da partida... para você ver como é David Selznick.” (p. 65).

com Leslie Howard em "Intermezzo" (1939)

A resenha de “Intermezzo” publicada no The New York Times em fins de 1939 deixava claro que a atriz havia correspondido aos anseios do diretor. Segundo a folha, “A sueca Ingrid Bergman é uma pessoa tão adorável e uma atriz tão graciosa que estamos felizes por David Selznick ter escolhido o calmo ‘Intermezzo: a love story’, para sua estreia em Hollywood ao invés de algum drama heroico que, se não tivesse subjugado sua estrela, poderia ter nos subjugado e nos tornado menos conscientes da frescura, simplicidade e dignidade natural que são os agradáveis dons de Miss Bergman à nossa tela. Ela é bela, mas não é linda. Seu modo de atuar é surpreendentemente maduro, ainda que singularmente livre de maneirismos estilísticos. Há aquela incandescência em Miss Bergman, aquela faísca espiritual que nos faz crer que Selznick encontrou outra grande dama das telas."

“Frescura e simplicidade” definem Ingrid Bergman bastante bem. Ela atuava - fingia -, no entanto, não podia ser mais natural, mais verdadeira. Neste sentido, a história que a atriz conta acerca de sua recusa a se maquiar é, se não verdadeira, ao menos sintomática. A ausência de maquiagem acompanhou a atriz ao longo de sua carreira. Creio ser por isso que ela me impressionou desde que a vi pela primeira vez em "Spellbound" e que me impressiona desde então.

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